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Fome
e Evangelho

Fome e Evangelho

20 anos do documento da CNBB

“Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da  Fome”

 
“Jesus chamou os seus discípulos e disse: Sinto compaixão dessa multidão. Já faz três dias que estão comigo, e não tem nada para comer. Não quero mandá-los embora sem comer, para que não desfalecem pelo caminho.” (Mt 15, 32)
Dai-lhes vós mesmos de comer!”  (Mt 14,16)
 “Onde estiver alguém caído na estrada da vida, aí deve estar a Igreja, a exemplo do Bom Samaritano, socorrendo com as suas obras e associações.” (Documento 69 da CNBB)
“Senhor, dai pão a quem tem fome, e fome de justiça a quem tem pão!”

O presente texto propõe uma nova visita às páginas do documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome, de número 69, aprovado na sua 40º Assembleia Geral, em abril de 2002, portanto 20/21 anos de sua aprovação pelos bispos do Brasil. Ler ou reler o documento à luz da realidade dos nossos dias e dos novos desafios e tarefas para superarmos as enormes desigualdades socioeconômicas do país. Nas últimas décadas, o Brasil experimentou muitas conquistas, como por exemplo, a saída do mapa da fome e da miséria. Porém, infelizmente, o país voltou ao mapa da fome, fruto de uma crise econômica, política e ética, que já se arrasta desde 2015, às consequências das contra-reforma da previdência, trabalhista, teto de gastos … agravada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) e pelo extremismo político dos últimos anos.

Aqui vale lembrar a convocatória feita por Dom Hélder Câmara nos anos 1990 por causa da celebração do Grande Jubileu: Ano 2000 sem fome! Um grito profético e um sonho conectado com a missão evangélica para que todos tenham vida e a tenham em abundância.

Outra motivação para voltarmos ao Doc. 69 é a Campanha da Fraternidade deste ano, que traz o tema do combate à fome como um gesto concreto do período de conversão quaresmal e para todo o ano. Na linha do chamado do Papa Francisco para que nenhuma família fique sem Teto, sem Terra e sem Trabalho, seguindo o sonho do profeta Isaías no seu capítulo 65.

Desde a redemocratização, e com a promulgação da nova constituição de 1988, ano após ano o Brasil vinha construindo políticas públicas e ações governamentais no sentido de enfrentar um drama da vida brasileira que é a fome, a miséria e as enormes desigualdades, fazendo isso em um ambiente de muito diálogo, também de conflitos e dissenso, mas com a capacidade de gerar consensos e políticas exitosas que fizeram o país caminhar para um ambiente social de mais prosperidade, com geração de emprego e renda, e programas sociais que atendiam o socorro na intenção de superarmos a fome e a miséria no país. Vale aqui destacar as ações e mobilizações da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais, em especial as Igrejas, com a sua voz profética e ao mesmo tempo promovendo inúmeras iniciativas contra a fome, contra os efeitos da seca no nordeste, passando para o projeto de convivência com o semiárido, iniciativas nas várias áreas de periferias das médias e grandes cidades, ou seja a Igreja sempre esteve nas dores do povo sendo samaritana e organizando o povo na defesa dos seus direitos.

Nos últimos anos, o Brasil e outros países, vêm experimentando, infelizmente, a volta para o mapa da fome, o aumento do desemprego, a falta de moradia e de tantos outros direitos, com isso o aumento do número das pessoas em situação de rua, a falta de perspectiva de um presente e um futuro próspero, atinge em cheio milhares de famílias. Desde 2015 o Brasil vem passando por uma crise  econômica, política e ética que fez a curva crescente da inclusão social despencar, e com isso fazendo a curva das desigualdades econômicas e sociais e da fome, crescerem  assustadoramente, muito do diagnóstico da realidade brasileira apontada no Documento 69 da CNBB em 2002, volta a estar presente 20 anos depois. Retomar este importante documento da CNBB, para realizarmos um novo chamado para uma grande aliança em torno do combate à fome e a miséria, e ao mesmo tempo criarmos as condições de um amplo diálogo que tenha como centro as alternativas de superação das desigualdades socioeconômicas, e aqui a Igreja Católica cumpre uma especial missão profética de ser interlocutora e de construir as pontes necessárias entre as diversas forças sociais, políticas e econômicas, para que entendam e assumam como prioridade absoluta enfrentar o grande problema do Brasil que é a sua desigualdade social e regional.

As fontes 

A Palavra de Deus e o Magistério Social da Igreja nos impõe como dever ético e um imperativo de ordem cristã, a nossa atuação na sociedade, para que nenhum/a irmão/ã passe fome, para que nenhum/a filho/a de Deus fique na miséria, mas para que todos/as tenham as oportunidades de viver com dignidade e a possibilidade de realizar plenamente os seus talentos e com isso fazer cumprir a missão do próprio Jesus que veio para que todos tivessem vida e vida em abundância. A fome, a miséria e a desigualdade são um ataque  contra a  dignidade humana, ou seja, é uma ofensa à dignidade dos filhos e filhas do Deus da Vida, que se fez carne e habitou entre nós. Fomos criados a sua imagem e semelhança, por isso, em cada pessoa em situação de rua, migrante, desempregada e tantas outras situações de miséria, discriminação e abandono, encontramos o rosto do próprio Deus Criador e Pai, e um apelo a repetir aquele abraço de São Francisco com o leproso. É hora de conversão, é hora de mudança!

Quantas vezes cantamos em nossas celebrações e encontros o hino que marcou a Campanha da Fraternidade de 1995, aqui vale destacar um trecho:

Seu nome é Jesus Cristo e passa fome
E grita pela boca dos famintos
E a gente quando vê passa adiante
Às vezes pra chegar depressa a igreja
 
Seu nome é Jesus Cristo e está sem casa
E dorme pelas beiras das calçadas
E a gente quando vê aperta o passo
E diz que ele dormiu embriagado
Entre nós está e não O conhecemos
Entre nós está e nós O desprezamos

Outra canção que nos faz refletir e nos ajuda, é a do Padre Zezinho, intitulada ‘Por um pedaço de Pão’:

Por não ter vinho nem pão, por lhe faltar a comida
Eu já vi mais de um irmão desiludido da vida
E por não dar do seu pão, e por não dar do seu vinho
Vi quem dizia ser crente, perder de repente os valores morais
Vi que o caminho da paz só se faz com justiça e direitos iguais
 
Por um pedaço de pão e um pouquinho de vinho
Deus se tornou refeição e se fez o caminho
Por um pedaço de pão, por um pedaço de pão
Por um pedaço de pão, por um pedaço de pão

Cantamos e rezamos a realidade ferida do Povo de Deus e somos chamados/as permanentemente a criar as condições de uma conversão social  que vá além das mudanças pessoais, e crie as possibilidades de uma sociedade mais justa e solidária.

O nosso Agir

 “O que falta é vontade política para mobilizar recursos a favor dos que têm fome.”
Josué de Castro.

 Por fim, é importante  fortalecer e estimular as ações das Cáritas, das pastorais sociais, instituições de promoção humana que fazem da solidariedade  a causa de sua existência, a pastoral da população em situação de rua, bem como as campanhas de doação de alimentos, aluguel social, casas abrigos, projetos de economia popular e solidária, crédito solidários, cooperativas e tantas outras iniciativas. Outra frente necessária, é a frente das políticas públicas e econômicas que orientem a ação do Estado nas suas três esferas (federal, estadual e municipal), para que cumpra o seu papel de indutor do desenvolvimento com ampla participação das forças vivas da sociedade, possibilitando  plena realização dos direitos, tais como: moradia digna, trabalho e salários decentes e justo, educação e saúde universal e de qualidade, entre outros. Aqui as sugestões de iniciativas propostas pelo próprio Documento 69 estão atuais e necessárias.

Superar a fome e a miséria  é apostar em outra economia, responder o chamado do Papa para Re-almar a economia, como ele mesmo definiu no seu chamado para a Economia de Francisco que no Brasil chamamos de Economia de Francisco e Clara. O debate econômico é de toda a sociedade e devemos corajosamente participar.

Uma recomendação importante do doc 69 é a criação ou retomada dos comitês de superação da fome e da miséria, espaços de articulação das ações da Igreja e da sociedade.

Vale destacar a afirmação da iniciativa do Papa Francisco quando instituiu o Dia Mundial dos Pobres como um dia de oração, ação e convocação das forças vivas para fazerem  da política o espaço central da luta pela justiça social e ambiental. Criar as bases para um novo sistema econômico.

Que a Campanha da Fraternidade nos ajude a fortalecer e ampliar o movimento pela superação da fome e das desigualdades. Caminhemos!

Roberto Jefferson Normando
Formação em Filosofia
Membro da Coordenação da Comissão Diocesana Para as Pastorais Sociais de Campina Grande – PB
Membro da Rede de Assessores/as do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara – CFEP/CNBB
Membro da Articulação para a Economia de Francisco e Clara.