“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus”.
(Evangelii Gaudium, nº 1)
“LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”
(Laudato Si, 1)
“Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes desviadas por inúmeros factores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação como protagonistas das grandes maiorias e este protagonismo transcende os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo de paz e de justiça duradouras pede que superemos o assistencialismo paternalista, exige que criemos novas formas de participação que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum. E assim com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor.”
(Discurso do Papa Francisco por ocasião do I Encontro Mundial dos Movimentos Populares no Vaticano em 28 de outubro de 2014)
“Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível!”
(Mensagem de Páscoa 2025 do Papa Francisco)
“Todo Cambia” – (Mercedes Sosa)
Começo este texto com citações importantes do próprio Papa Francisco, que expressam sua visão, sua vida e sua missão a partir de seus gestos e da sua simplicidade. Era o Papa dos três Ts – Teto, Terra e Trabalho –, o Papa da cultura do encontro e da paz.
A revista norte-americana Time, em 1992, escolheu São Francisco de Assis como o homem do segundo milênio. Entre tantas outras personalidades, foi um homem de uma cidadezinha chamada Assis que foi o escolhido. Em 2013, ao ser eleito Papa e depois de ouvir um pedido do seu amigo e cardeal brasileiro, Dom Cláudio Hummes, para que não se esquecesse dos pobres, Jorge Mario Bergoglio escolheu o nome de Francisco, uma clara referência e opção pelo santo de Assis.
Muito já foi dito sobre o Papa Francisco e muito ainda há de ser falado sobre essa figura ímpar e singular. Corro o risco de ser repetitivo ou de omitir muitas coisas que ainda poderiam ser ditas. Escrevo, primeiramente, com a emoção da notícia de sua partida, depois com a memória do que acompanhei e fui tocado nesses 12 anos do seu ministério como bispo de Roma e pastor universal da Igreja Católica. Também escrevo com a forte lembrança da experiência que vivi em setembro de 2022, quando tive a oportunidade de estar pertinho do Papa Francisco, na cidade do santo que inspirou não apenas o seu nome, mas todo o seu caminho de vida – especialmente à frente da Igreja – e o chamado para “realmar a economia”: São Francisco de Assis. Escrevo, ainda, com a esperança em seu legado e profunda gratidão por tudo o que ele nos deixou.
Um homem de fé e um homem da alegria
Nas próximas linhas, me atrevo a refletir sobre o homem de fé que ele foi. A razão de sua existência, de sua caminhada, estava no seguimento a Jesus Cristo, o pobre de Nazaré. Por isso sua alegria: ele era mensageiro de um encontro que transforma vidas. Só é possível compreender a mensagem cristã na vivência da sua novidade, que é sempre alegre, sempre acolhedora, porque brota de um Deus que é amor e misericórdia. Misericórdia – palavra do latim formada pela junção de duas outras: miser (miserável, sofredor) e cordis (coração) – ou seja, um coração que se compadece, que se debruça sobre a miséria, um coração compadecido. Por isso Francisco tanto insistiu em uma Igreja da Misericórdia, porque Deus é um Deus compadecido, que vai ao encontro da dor, do sofrimento das pessoas – como ele sempre costumava falar e escreveu tão bem na sua primeira exortação apostólica como Papa, em 2013: Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho.
Era um homem que, por sua experiência de fé, fez a opção de ser um religioso e sacerdote jesuíta. Foi um pastor, um cardeal e um Papa dos pobres – não para os pobres, mas com os pobres – porque a dignidade humana brota do coração de um Deus misericordioso. Chamava todas as pessoas a se engajarem na transformação do mundo: de um mundo de ódio e separações para um mundo de encontro e de paz; de uma economia que mata para uma economia com alma, a serviço da paz e da justiça.
Por isso seu convite – e ao mesmo tempo sua profecia – na acolhida aos movimentos populares de todo o mundo, quando disse em alto e bom som: “Nenhuma família sem teto, nenhuma família sem trabalho, nenhuma família sem terra”, inspirado no capítulo 65 do profeta Isaías.
Jorge Mario Bergoglio – Papa Francisco – era, antes de mais nada, um homem de fé. A fé marcou toda a sua vida, suas escolhas. Era um autêntico seguidor de Jesus Cristo, a exemplo de Maria, a mãe de Jesus, de Santo Inácio de Loyola, São Francisco de Assis, Santa Teresinha do Menino Jesus, e tantas pessoas que encontrou ao longo de sua jornada. Um homem apaixonado e contagiado pela alegria do Evangelho, um cristão católico discípulo e missionário – como lembrou a Conferência de Aparecida (V Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe, realizada em 2007), cujo relator do documento final foi o próprio cardeal Jorge Mario Bergoglio.
As causas de sua vida, de suas falas e testemunhos eram causas por causa da fé – consequências da crença de que Deus só pode amar.
Um homem de humanidade
“Não pode haver paz, desenvolvimento e bem-estar apenas para alguns.
E a paz não é perdida apenas onde há conflito, mas o é já quando há exploração econômica e social.”
(Cardeal Carlo Maria Martini)
Em uma época marcada pelo individualismo, pela globalização da indiferença, pela economia do descarte e da morte, pelas bolhas, pelos ódios, preconceitos, separações, muros, conflitos e guerras, tivemos um homem profundamente marcado por uma missão: a de aproximar, dialogar. Um Papa instrumento da paz, assim como São Francisco de Assis ao se encontrar e buscar o diálogo com o sultão há mais de 800 anos.
Era um portenho, um homem da cidade de Buenos Aires – ou melhor, das periferias geográficas e existenciais da sua Argentina, da sua América Latina, de Roma e do mundo. Era o homem que andava de metrô. Imagino quantas conversas e risadas ele teve com seus irmãos e irmãs em tantas idas e vindas no metrô, ou nas calçadas de Buenos Aires. O que vimos a partir de Roma, os argentinos já conheciam em seu cotidiano: o homem do sopão na periferia, dos mutirões na organização das famílias na luta por moradia, transporte público e trabalho. Era o homem das dores e das angústias, mas também das alegrias e dos sorrisos do seu povo.
Quantas vezes ele não deve ter se sentado em um beco ou em uma viela, tomando mate ou café no meio do povo, ouvindo suas histórias? Era o homem da escuta – muito mais da escuta do que da palavra –, pois quando falava, suas palavras vinham carregadas de escuta. Por isso tocava de maneira singular o coração daqueles e daquelas ao seu redor.
Posso dizer que, talvez, na história recente, tenha sido o primeiro Papa profundamente conectado com a cidade, com a rua, com o campo. Um Papa da rua e do campo.
Francisco, com seu sorriso, sua acolhida, sua voz e seus gestos, só queria expressar a profunda humanidade que carregava. Era uma pessoa cheia de humanidade. Um homem de fé profundamente conectado com o Criador de todas as coisas – como vemos no Gênesis, nos seus primeiros capítulos, que sempre terminam dizendo: “Deus viu que era bom”.
Por isso sua facilidade para o diálogo, para o encontro. Sua defesa da dignidade humana. Sempre falava a partir do positivo e não do negativo. A política que ele fazia não pode ser compreendida à luz das ideologias, de nosso sistema partidário ou do velho esquema de direita e esquerda. Ele não era comunista, estava além disso. Sua política era a política a favor das grandes causas da humanidade.
Era em nome dessas causas que ele dialogava, se encontrava, recebia quem fosse, promovia pontes. Era a política das grandes causas, e não dos instrumentos. É a política que pessoas de fé, independentemente dos partidos e opções ideológicas que assumam, precisam encarnar.
Ou seja, não era o fato de ser progressista ou conservador que o levava a tomar uma posição ou se encontrar com um grupo, mas seu total serviço à causa da humanidade. E para uma pessoa de fé cristã e católica, diria: se amamos a Deus, imediatamente amamos a humanidade, porque a humanidade e toda a criação são obras de um Deus Amor. E esse amor se expressa no encontro com o outro, no cuidado com a natureza, na vivência da misericórdia e da reconciliação; se expressa na busca de uma humanidade reconciliada, que reencontre seu caminho comum – e não o caminho da separação.
Por isso, posso dizer que sua vida foi um testemunho da oração de São Francisco de Assis. Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz.
Francisco não precisava assumir nenhuma opção ideológica ou partidária, porque sua opção pelos pobres está no coração do Evangelho. O próprio Papa Bento XVI afirmou em seu discurso na abertura da Conferência de Aparecida, em 2007:
“A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza.”
A vida dos pobres, a defesa do estrangeiro e dos sofredores de toda ordem permeiam toda a Sagrada Escritura e a Doutrina da Igreja Católica. O Papa Francisco, a exemplo de São Francisco de Assis, testemunhou tudo isso com a radicalidade de sua vida e de suas escolhas.
Francisco foi o Papa que buscou, o tempo todo, construir pontes. Não se cansava da arte do diálogo, mesmo que os resultados não fossem imediatos. Era o Papa da conversa, do olhar nos olhos. Não desistiu, em momento algum, de propor a resolução dos conflitos por uma única via: a da não violência. Por isso insistia na cultura do encontro e na globalização da solidariedade.
Era o Papa da proximidade – o Papa que foi à Ilha de Lampedusa para estar entre os refugiados e migrantes; o Papa que almoçava com pessoas em situação de rua; o Papa que acolheu todas as pessoas, crentes ou não, pessoas LGBTQIAP+; que denunciava toda forma de preconceito e discriminação. Como disse em sua entrevista no Brasil:
“Quem sou eu para julgar?”
O Papa que ousou denunciar toda forma de machismo, racismo e intolerância religiosa, porque via, em cada pessoa, a dignidade que o próprio Deus havia conferido a todas e todos como seus filhos e filhas. Por isso, ele não podia – e não queria – que a Igreja fechasse as portas para ninguém. Queria uma Igreja sempre de portas abertas.
Era um homem que acreditava na democracia, porque viu de perto os horrores de uma ditadura. Sabia que apenas em um regime democrático é possível a vida florescer em plenitude, porque somos uma sociedade diversa, somos diferentes. E a convivência só é possível de forma plural e pacífica, não sob o domínio de uma força sobre as outras.
Foi um Papa cheio de humanidade, porque era um homem do céu, um homem com gosto de eternidade. Era alguém comprometido em fazer da Casa Comum um lar onde ninguém ficasse de fora.
“A boa notícia é para todos, todos, todos”, como ele gritou na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa.
Francisco tinha defeitos? Claro. Tinha suas limitações, erros também. Mas foi exatamente com ele que aprendemos a arte de nunca julgar e de sempre acolher, de cair para levantar de novo, como ele sempre exortava.
Para Francisco, só há mudanças se estivermos contagiados pelo entusiasmo, pela alegria, pelo bom humor. Ele dizia: como podemos anunciar um mundo novo estando tristes? Com raiva? Com a cara fechada? A indignação diante da injustiça não é adesão à tristeza, ao rancor, à mágoa, mas sim à alegria de viver e construir um mundo melhor para todas e todos.
Ou seja, sem alegria, mesmo nos momentos mais difíceis, um processo de mudança não se sustenta, porque não está enraizado no novo, na vida que sempre é bela.
O Papa da Esperança, das Minorias Abraâmicas
“…Uma minoria que nasceu para dedicar-se, sair de si, pensar nos outros, sacrificar-se pelo bem comum, votar a vida à causa de um mundo mais justo e mais humano. Chamemo-la minoria abraâmica, pois, como Abraão, espera contra toda esperança.”
(Dom Helder Câmara)
Para concluir — sem concluir de fato, porque sua vida foi marcada por abrir processos e caminhos para outros seguirem —, posso dizer que o Papa Francisco viveu um apelo que Dom Helder Câmara expressou no I Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em maio de 1956, na cidade de Campina Grande – PB:
“Não somos pastores de almas desencarnadas.”
Assim viveu Francisco: um pastor de almas encarnadas, um pastor do cotidiano, um pastor com o cheiro de suas ovelhas.
A experiência da fé cristã não é apenas pessoal, é também comunitária. A adesão a Cristo só é plena na comunidade, no compromisso comunitário com todas as pessoas. Foi isso que Francisco tanto testemunhou e ensinou. Essa era a sua esperança.
Um Papa marcado pela esperança. Foi assim que ele participou da celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Foi assim que redigiu seus escritos – Laudato Si, Fratelli Tutti… Foi assim que ele se encontrou com o Patriarca Ortodoxo Bartolomeu I para celebrar os 50 anos da reaproximação entre a Igreja do Oriente e a Igreja de Roma. Foi assim que encontrou judeus, muçulmanos e cristãos na Terra Santa para rezarem juntos pela paz e para insistirem nos processos de reconhecimento dos dois Estados.
Foi assim que, em Abu Dhabi, ele assinou a importante Declaração sobre a Fraternidade Humana, juntamente com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmed Al-Tayeb. Foi assim sua defesa incansável do diálogo inter-religioso.
Foi assim que promoveu os encontros mundiais com os movimentos populares. Foi assim que lançou a iniciativa por uma nova economia, chamada de Economia de Francisco, que aqui no Brasil chamamos de Economia de Francisco e Clara.
Foi assim que idealizou outra importante iniciativa: o Pacto Global pela Educação, entre tantas outras. Foi assim que ele retomou com força e vigor a agenda dos avanços do Concílio Vaticano II, com o Sínodo da Sinodalidade. Foi vivendo o que Dom Paulo Evaristo Arns gostava de dizer:
“De esperança em esperança.”
Francisco foi um homem de fé profundamente pascal. Defendia a Casa Comum por causa da Páscoa – onde a morte nunca tem a última palavra. Defendia a paz porque o Senhor Ressuscitado é o Senhor da Paz. Sua última mensagem foi carregada de esperança, no domingo da Páscoa. Era um homem pascal – e sua passagem se deu exatamente um dia depois do Domingo da Ressurreição. Depois de proclamar que a paz era possível.
Isso prova ainda mais sua profunda conexão com a fé pascal.
Francisco: o homem da esperança, da alegria, do sorriso, da eternidade. Certa vez, o Papa São João Paulo II disse que o mundo tinha saudades de Francisco de Assis.
Hoje, posso dizer que o mundo tem saudades de dois Franciscos: o de Assis e o de Roma.
Francisco, tua vida não acabou. Agora é que ela começa. Agora ela iluminará um mundo fragmentado, violento e desigual – para construir um mundo de reconciliação e de paz. Essa missão agora é nossa.
Ajudai-nos, Francisco, a sermos instrumentos da paz, do bem e da arte de conversar.
(Em outro texto, irei refletir sobre as inúmeras iniciativas que o Papa Francisco empreendeu e os muitos encontros que promoveu com diversos setores da sociedade, da Igreja e do mundo ecumênico e inter-religioso.)
Viva Papa Francisco! Um homem de fé, cheio de humanidade!
Roberto Jefferson Normando
Coordenador Executivo do Observatório Social do Nordeste
Membro da Articulação Brasileira e do Nordeste pela Economia de Francisco e Clara
Membro da Rede de Assessores do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (CNBB)
Membro do Conselho de Leigos e da Escola de Fé e Política da Diocese de Campina Grande – PB