Marcos Vinicius de Freitas Reis[1]
O título deste texto é muito sugestivo e, ao mesmo tempo, polêmico. Alguns pesquisadores dizem que o Brasil pouco avançou no debate sobre a liberdade religiosa, outros estudiosos declaram que o país nunca foi uma nação que respeita a escolha de ter ou não uma religião. O tema carece de explicações para a compreensão deste fenômeno atual e importante na vida do brasileiro.
A laicidade consiste no respeito à escolha de ter ou não uma religião. As escolhas da relação com o sagrado são de fórum íntimo. Ou seja, cabe às pessoas a decisão de quererem ou não praticarem alguma religião ou religiosidade em seu âmbito privado. O particular é o local do exercício da fé. Esta fé ajuda o sujeito a enfrentar as adversidades da vida cotidiana, auxilia no conforto emocional nos momentos de tristeza e também em outras áreas da vida humana.
O contato com o sobrenatural não é feito de uma única forma. São inúmeras expressões religiosas que coexistem atualmente: Igreja Católica, Igrejas Evangélicas, Espiritismo, Candomblé, Umbanda, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Adventistas, Santo Daime, União do Vegetal, Judaísmo, Vale do Amanhecer, Racionalismo Cristão, Paganismo, Budismo, Igreja Messiânica, Seicho-No-Ie, Fé Bahai, dentre outras propostas. Por serem diversas, não podem ser hierarquizadas. Obrigatoriamente, devem ser tratadas com igualdade entre a sociedade.
Em um contexto de país laico, as instituições públicas e democráticas não devem privilegiar uma instituição religiosa em detrimento da outra. O Estado, imprescindivelmente, tem que ser neutro em matéria de religiosidade. As autoridades públicas não devem impor e nem bloquear o exercício de culto. Isso é constitucional.
Repito: O Brasil não tem uma religião oficial. As decisões políticas e administrativas dos serviços públicos precisam ser baseadas nos princípios constitucionais e nos regimentos dos seus órgãos e não a partir dos fundamentos religiosos de alguma instituição religiosa, crença ou filosofia de vida.
Em um país democrático como o Brasil, a defesa da laicidade precisa ser pauta prioritária de políticas públicas. São necessárias ações para combater as formas de intolerância religiosa/racismo religioso; promover a boa harmonia de convivência entre os grupos religiosos; estimular a criação de comitês nos estados, municípios e no distrito federal com o tema pela preservação e defesa da diversidade religiosa; acionar o Ministério Público quando ocorrer proselitismo religioso ou intolerância religiosa/racismo religioso nas repartições públicas.
Esta realidade apresentada acima não condiz com a que vivemos, pois há aumento do número de casos de intolerância religiosa no Brasil. De uma forma ou de outra, todas as confissões religiosas, espiritualidades, crenças, filosofias de vida e ateus sofrem por suas escolhas de praticar ou não o exercício da relação com o sagrado.
Não raros os momentos, os jornais comunicam que Igrejas Católicas são invadidas e seus santos são quebrados. Igrejas Evangélicas possuem bíblias queimadas e são criticadas pela sua postura rígida sobre pautas de costumes. Maçons são acusados de terem pacto com o Diabo. O espiritismo e as religiões de matrizes africanas são associados com demônios. Os adeptos do uso da substância da ayahuasca são acusados de estimularem o uso das drogas. Curandeiros e benzedeiros são vistos como feiticeiros ou charlatões. Adeptos do paganismo são considerados bruxos que compactuam com o diabo, e os ateus comumente são apontados como pessoas ruins por não acreditarem em Deus.
Sem sombra de dúvidas, as religiões de matrizes africanas são as que mais sofrem intolerância religiosa. A situação mais dramática encontra-se no Rio de Janeiro, onde os terreiros são invadidos por outros segmentos cristãos e suas imagens são quebradas, outros acessórios são queimados e alguns líderes até mortos ou espancados. Vestir-se de branco e andar nas ruas, às sextas-feiras, pode ser motivo para que algum radical religioso promova alguma forma de violência contra o afro-religioso.
O fenômeno dos traficantes evangélicos é algo assustador. É notório que a conversão evangélica cresceu muito nos últimos anos. Há quem diga que daqui a, no máximo, 30 anos, os indivíduos serão, majoritariamente, cristãos evangélicos.
A maioria da população pobre do Estado do Rio de Janeiro mora nas favelas ou outros locais de baixo saneamento básico e é identificada com os valores evangélicos. Nestes locais, moram traficantes que diariamente praticam o tráfico de drogas e, por seguirem uma religião diferente, eles invadem os templos das religiões de matriz africana, quebram tudo o que tem por lá e ainda matam o pai ou mãe de santo; alegam que as religiões de inspiração na cosmovisão africana são demoníacas, patológicas, desviantes e erradas. Em suas concepções, é vontade de Deus que os umbandistas e candomblés sejam convertidos ou combatidos.
No Estado do Amapá, as práticas de intolerância religiosa têm crescido. Nos últimos anos, aconteceram situações vexatórias. Em julho de 2019 no terreiro de Pai Salvino, as atividades religiosas e sociais foram desenvolvidas no bairro das Pedrinhas e durante a festa do glorioso São João, um grupo de religiosos iniciaram atitudes que podem ser caracterizadas como intolerantes. Quem estava no local disserta que religiosos jogavam pedras no telhado do templo, faziam orações efusivas para que os demônios saíssem de lá e usavam caixas de som que reproduziam cânticos altíssimos para atrapalhar as atividades. Tentativa clara de proselitismo religioso e desrespeito ao exercício religioso em culto privado do outro.
Ao longo dos anos, o Brasil avançou, em parte, na liberdade religiosa. Não existe mais uma religião oficial. Em suas casas, as pessoas possuem certa autonomia para praticarem ou não uma religião ou espiritualidade. Mas, de acordo com as questões públicas não é bem assim. As decisões políticas beneficiam católicos e evangélicos. Exemplos: partidos confessionais, bancadas religiosas, concessão de rádio e TV, feriados religiosos, financiamento público em projetos religiosos, dentre outras situações. A expectativa é de que, por meio da atuação de todas as pessoas, a situação supracitada modifique a favor da liberdade religiosa.
O Brasil tem sérios problemas no tocante em assumir uma posição clara e objetiva acerca da laicidade. Avançou significativamente na liberdade de culto e de escolhas religiosas. Entretanto, o Estado e outras repartições públicas não tratam de forma igualitária as instituições religiosas. As políticas públicas adotadas de interesses às entidades confessionais, beneficiam claramente setores evangélicos e católicos. Tais privilégios podem ser percebidos por meio do tratamento dos símbolos religiosos em espaços públicos.
Tradicionalmente, o Brasil priorizou a agenda católica no campo político e cultural. Os símbolos católicos reforçavam a ideia que ser brasileiro é também ser católico. Houve financiamento de construção de imagens em ambientes públicos, uso de crucifixos em espaços de deliberações políticas, distribuição de bíblias nas escolas, dentre outras iniciativas. A partir dos anos 1990, com o crescimento dos evangélicos, o Brasil não é mais um país de hegemonia católica e sim de pluralismo de expressões cristãs, e os símbolos religiosos pentecostais e neopentecostais são valorizados e financiados pelo Estado. Roupas, templos, bíblias, cruz panfletos são utilizados e incentivados como meios religiosos necessários para a vida em sociedade.
Outros exemplos que demostram que símbolos católicos e evangélicos são beneficiados em relação aos outros são os crucifixos que permanecem na Câmara dos Deputados e de Vereadores no Brasil. Muitas ações já foram movidas por setores da sociedade civil, argumentando que a lógica laica de uma democracia como é a brasileira, não pode permitir um único símbolo religioso em uma repartição pública. A argumentação alega que as decisões discutidas e deliberadas não podem sofrer interferência direta ou indireta de qualquer confissão religiosa. No entanto, algumas decisões judiciais julgam pertinentes a presença dos crucifixos nas repartições públicas supracitadas. Alegam que, culturalmente, o Brasil é cristão e que a presença de elementos religiosos em espaços públicos significa o direito pleno do exercício da liberdade religiosa.
O mesmo nem sempre acontece com os símbolos ligados às religiões de matriz africana. Ao falar das oferendas, vestimentas, danças, objetos, comidas, e outros utensílios, sempre são associados às questões demoníacas, erradas, desviantes e imorais. Historicamente, não foram poucas as ações que proibiram terreiros de candomblé ou umbanda (e setores do espiritismo) de praticarem seus rituais publicamente ou usarem seus elementos. Atualmente, fiéis afro-brasileiros estão evitando usarem branco nas sextas e saírem nas ruas com medo de serem mortos, ridicularizados ou espancados. Mais uma vez, é preciso lembrar que o grupo religioso que mais sofre intolerância religiosa são as religiões de matrizes africanas. Seus templos são invadidos e destruídos. Lamentável.
O enfoque é a defesa de uma democracia que reconheça, em termos práticos, o direito individual da utilização de símbolos religiosos num contexto que a laicidade é respeitada. O direito ao uso dos símbolos religiosos pela pluralidade religiosa, sem recorrer ao fundamentalismo, pode ser uma ação de política pública. Expressar por meio de elementos religiosos o que determinada experiência de fé significa e o que ela traz para a vida pessoal de todo ser humano é natural e fundamental em algumas situações.
[1] Professor da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA), Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Maranhão (UEMA). Líder do Centro de Estudos de Religião, Religiosidades e Políticas Públicas (CEPRES-UNIFAP/CNPq). Interesse em temas de pesquisa: Religião e Políticas Públicas. E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br