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O bem-viver e a renovação do Pacto das Catacumbas

O bem-viver e a renovação do Pacto das Catacumbas

Daniel Seidel[1]

No último dia 20 de outubro, dia mundial das missões, em Roma, quiçá eu tenha vivido um dos momentos mais intensos de minha vida. Participei da eucaristia, presidida por Dom Claudio Hummes, quando atualizamos e renovamos o Pacto das Catacumbas, junto aos padres sinodais do Sínodo da Amazônia, que aqui se realiza de 6 a 27 de outubro de 2019.

O Pacto das Catacumbas original foi assinado pelos bispos que faziam parte do grupo chamado “Igreja dos Pobres”, liderados, entre outros por Dom Hélder Câmara, na Catacumba de Santa Domitila, em Roma, a 16 de novembro de 1965, alguns dias antes da conclusão do Concílio Vaticano II e representou o compromisso dos bispos em ser “uma Igreja pobre com os pobres”, apostando no testemunho de vida simples para uma autêntica aproximação do modo de vida dos excluídos e excluídas da sociedade, principalmente a partir da Igreja latino-americana. Nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano que se seguiram, principalmente, Medellín (1968) e Puebla (1979), os compromissos dos padres conciliares se transformaram em diretrizes para implantação das orientações do Concílio Vaticano II nas igrejas locais (arquidioceses, dioceses e prelazias). Daí nascem: as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e a opção preferencial pelos pobres, duas das características mais importantes da caminhada da Igreja latino-americana e caribenha.

Foi numa basílica subterrânea, a Catacumba de Santa Domitila, dedicada aos Santos Mártires, Nereu e Arquileu, e à Santa Petronila. Nesse lugar, até o século III, as primeiras comunidades cristãs se reuniam, visto que eram perseguidas principalmente pelo Império Romano. “Aqui celebramos sobre o santo dos mártires”, afirmou Dom Cláudio Hummes durante a Eucaristia. E seguia ele “todas as vezes que a Igreja precisa realizar reformas profundas é preciso voltar às raízes”, aqui se expressa essa igreja primitiva que procurava viver a fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo.

Se em 1965 o clamor dos pobres do mundo ecoava e chegava aos céus, hoje se junta a essas vozes, o grito da Mãe-Terra, ou da Pachamama, para denunciar profeticamente que este modelo de organização da sociedade atual mundial não tem futuro, pois extermina o presente, envenenando as águas e os solos e torna o ar e ambiente inóspito para vida. É a falência desse modelo explorador e contrário à vida em todas as suas expressões que nega a essência da missão de Jesus Cristo, quando afirma na Boa Nova registrada pelo discípulo amado, João: “Eu vim para que todos (num sentido amplo que inclui a mãe-terra) tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Os povos originários na América Latina e Caribe gestaram um jeito de viver integrado à Mãe-Terra que traduzimos como a nova utopia, o Bem-Viver. É essa redescoberta que a encíclica Laudato Si resgata quanto aponta para a centralidade da Ecologia Integral. Quando reconhecemos a necessidade do cuidado com a Casa Comum, valorizamos a integralidade da vida e da necessária interação com a Mãe-Terra, numa atitude de humildade e ousadia, buscando viver a “sobriedade feliz”, na língua de nosso povo, “o pouco com Deus, é muito”; ou aquilo que se afirma na teoria do decrescimento “o menos é mais”. Todavia, para dar esses passos, é necessário descolonizar nossa visão de mundo, práticas e pensamentos, adotando uma atitude de aprendiz diante da sabedoria da Criação que os povos indígenas tão bem souberam (e sabem) interpretar. E na resistência com os estes povos, assumir sua defesa.

Tudo foi pleno de significados. A marca de nossas digitais gravadas com tinta indígena de urucum no tecido branco, selando nosso pacto. A estola de Dom Helder Câmara utilizada por Dom Claúdio Hummes, significando a renovação e continuidade da necessária profecia.

Detalhe da estola que Dom Helder Camara usou no pacto de 1965, usada também por Dom Claudio Humes. Créditos: Pe Paulo Sérgio Vaillant

 

O gesto no final, feito por Dom Claudio de passar a estola para Dom Erwin, grande pastor e um dos principais articuladores na Igreja Católica no compromisso socioambiental expresso na Laudato Si e no Sínodo da Amazônia. O pacto ter sido assinado também pelos cristãos leigos e leigas, religiosas e religiosos, sacerdotes e bispos presentes, significando o compromisso, pessoal e coletivo, de toda Igreja Povo de Deus. Outra bela novidade, o pacto foi assinado por um pastor luterano presente e por dois irmãos da Assembleia de Deus, dando a dimensão ecumênica e do diálogo intercultural, visto a simbologia indígena já mencionada.

Minha assinatura carregou o compromisso daquilo que sou e represento neste momento: cristão leigo, membro da Comissão de Fé e Política do CNLB – Conselho Nacional do Laicato do Brasil; membro da coordenação nacional do Movimento Fé e Política; membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília e da Comissão Brasileira Justiça e Paz; integro a rede de assessoria do CEFEP – Centro de Fé e Política Dom Hélder Câmara; e componho a Equipe Executiva das Pastorais Sociais da Comissão Sociotransformadora da CNBB, que articula as Pastorais Sociais, Organismos e o Setor da Mobilidade Humana. Além disso, a partir de meus papeis de esposo e pai de família, e cidadão da periferia de Brasília, onde atuo na Pastoral do Batismo na paróquia.

Daniel Seidel assinando o Pacto. Créditos: Irmã Terezinha Santim, scalabriniana.

Também trago no coração minha paixão pelas juventudes e o compromisso da assessoria da REPAM, principalmente no Eixo Direitos Humanos e Incidência Política e os Comitês da REPAM Xingu e Marabá aos quais me dedico, e especialmente aos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da Região Amazônica. Como capixaba, do Vale do Rio Doce, carrego em meu peito as dores de minha família de sangue, atingida pelo crime cometido pela mineração em Mariana em novembro de 2015, que feriu de morte a bacia do rio.

Foi em nome de todas as mulheres e homens com os quais alimento a utopia do Bem-Viver, que traz as sementes do Reinado de Deus, que assinei e que peço que possamos, juntas e juntos, cumprir os quinze compromissos assumidos que acompanham este pequeno artigo para que a urgência da profecia faça acelerar a chegada da plenitude da vida, junto aos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, principalmente quilombolas e ribeirinhos.

Quanto temos que aprender… pois tudo está interligado nesta Casa Comum!!!

Roma, outubro de 2019.

 

[1] Daniel Seidel, 52 anos, é cristão leigo, mestre em Ciência Política e membro da CBJP/CNBB e da CJP-DF, da assessoria da REPAM-Brasil, da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política, da assessoria do CEFEP/CNBB e da Comissão Fé e Política do CNLB – Conselho Nacional do Laicato do Brasil.

Abaixo o texto do Pacto das Catacumbas pela Casa Comum:

Pacto das Catacumbas pela Casa Comum