Se as ciências sociais no século 20preconizaram a secularização da vida, as últimas décadas apontam para o oposto. A separação entre fé e política, advento do Iluminismo, prometeu a laicidade do Estado, mas não “apagou” a religiosidade como parte constitutiva dos sujeitos sociais que participam do processo político. A religião até hoje permeia as contradições da modernidade e interfere como nunca nas instituições “laicas” das sociedades da América Latina. Religiões e política em tempos de mudança, novo lançamento da Baioneta Editora, busca desvendar como a retórica do sagrado se mantém viva nas estruturas de poder de diferentes países latino-americanos.
O lançamento do livro será no dia 13 de outubro, às 13h, na Livraria Tapera Taperá (Av. São Luís, 187, São Paulo). A obra reúne jornalistas, cientistas políticos e sociólogos do Brasil, Argentina, México e Nicarágua na reflexão sobre como o pensamento religioso opera dentro dos quadros sociais e culturais de cada país. São discutidas não só as possibilidades abertas na esfera pública – à direita e à esquerda – pelas manifestações de fé, mas também como transformações e reveses na história política recente da América Latina são, tantas vezes, narradas e explicadas por cosmovisões religiosas.
Sob novas perspectivas, os autores debatem o panorama sociopolítico que forjou esse status da espiritualidade “não-sufocada pela Razão moderna” entre os povos do continente. E a conjuntura não poderia ser mais propícia: em 2013, Francisco I é nomeado o primeiro Papa latino-americano, com o compromisso de fazer reviver a Igreja de Roma no Hemisfério Ocidental, tão abalada pela competição com as denominações evangélicas. Ou seja, um projeto reformista revigorado, que marca mais uma etapa de descentralização da Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II.
A AMÉRICA DA IGREJA DE FRANCISCO
Para compreender a nova era que vive o catolicismo, o artigo do sociólogo Enzo Pace analisa a luta da Igreja para reconquistar sua visibilidade em uma época que a religião se tornou mais objeto de livre escolha individual do que sinal de pertencimento a uma determinada cultura. Assim, o Papa Francisco está tendo que lidar com um mundo cada vez mais avesso à hierarquia eclesiástica e a uma armadura teológico-romana, e com os desafios colocados por uma Igreja pós-eurocêntrica. Por isso, o autor questiona os desafios enfrentados pelo argentino Bergoglio: conseguirá ele implantar reformas que atualizem a milenar cultura organizacional da Igreja Católica?
O perfil político do pontífice também se faz presente no movimento dos Missionários de Francisco, nascido na Grande Buenos Aires em 2014, debatido no livro por Marcos Andrés Carbonelli e Verónica Giménez Béliveau. O grupo, que realiza trabalhos comunitários na periferia da capital argentina, associa a mensagem do novo papa ao peronismo de esquerda, em um cruzamento de matrizes políticas e religiosas que dialoga diretamente com o kirchnerismo. Os Missionários de Francisco são um exemplo de fé de cunho popular, típica da cultura religiosa latina, que hoje une o territorial ao global por meio da liderança do papa portenho.
NOVAS ERAS DA FÉ
No vácuo deixado pelo fim do monopólio do cristianismo pela Igreja Católica, outras denominações religiosas disputam corações e mentes nas zonas mais populosas do continente. O evangelismo neopentecostal, tema dos artigos dos brasileiros Airton Luiz Jungblut e Lamia Oulalou, cresce como um “refúgio” comunitário para as massas e se utiliza dos meios de comunicação massiva para ocupar os espaços “mundanos” da sociedade. No Brasil, foco dessa discussão no livro, o crescimento das igrejas evangélicas se consolida como uma poderosa força sociopolítica nos terrenos da política e negócios, atraindo a própria ex-presidente Dilma Rousseff para manter a governabilidade de seu governo.
Para além do neopentecostalismo, outras expressões contemporâneas da religiosidade, típicas da segunda metade do século 20, ganham destaque: as comunidades eclesiais de base ligadas à Teologia da Libertação, que hoje trazem pautas renovadas como a ecologia, e as correntes espiritualistas da Nova Era, que condensam um conjunto de novas experiências, como linguagens de energia, filosofia positiva e vegetarianismo. Estas últimas atravessam as religiões convencionais e reatualizam um “orientalismo” que deslumbrou parte das elites latino-americanas desde o século 19.
A atualidade dos debates propostos em Religiões e política em tempos de mudança é também pertinente à análise das últimas crises político-institucionais no continente, como a recente onda de violência na Nicarágua entre o governo sandinista e opositores. As raízes dos distúrbios políticos passam pela relação turbulenta entre diferentes governos e o cristianismo local, tema abordado por Andrés Pérez Baltodano. A cultura religiosa e política historicamente condicionou a percepção dos nicaraguenses sobre o poder, variando da influência da Teologia da Libertação durante a Revolução Sandinista a um “renovado” governo Daniel Ortega mais conservador em seus últimos mandatos, articulado com setores à direita do cristianismo.
Religiões e política em tempos de mudança promete desconstruir as premissas da sociologia e da politologia, que profetizaram uma era de desenvolvimento político apartado do sagrado. As experiências debatidas em detalhes, sob diferentes enfoques, comprovam a persistência do lugar do espiritual e do sobrenatural.
Fonte Correio da Cidadania