Direito Penal parece viver sua contínua crise. Das pretensões minimalistas do Estado Liberal e a conseqüente contenção do poder punitivo nesse paradigma, o Estado Moderno transformou-se, aderindo a um paradigma social-intervencionista, ampliando sua burocracia e maximizando a punição por meio da criação de novos bens jurídicos subscritos nos direitos sociais. A criação dos direitos coletivos, portanto, resultou na ampliação dos horizontes de criminalização, ainda que sob o argumento da defesa dos direitos humanos. O Estado Social apostou no aparato repressivo-punitivo como mecanismo capaz de proteger os novos direitos, o que resultou na expansão penal e na redução de garantias penais e processuais penais [1].
Concomitantemente à maximização do direito penal ao campo dos direitos sociais, no período entre Guerras o mundo assistiu à ascensão de modelos punitivos autoritários, identificados principalmente na doutrina de exceção do direito penal do inimigo [2]. Nesses modelos, a punibilidade fundamenta-se no estigma periculosista que repousa sobre um indivíduo ou um grupo detentores, a priori, da qualidade de risco, o que justificaria a violação dos mecanismos de limitação do poder punitivo [3]. Mais recentemente, desde o final do século XX, o sistema punitivo vem sendo legitimado pelos discursos de ordem alinhados ao campo conservador, e também pelos discursos da chamada esquerda punitiva [4], demandante de punição contra a violação de direitos humanos e contra as classes econômicas dominantes.
Os modelos periculosistas representativos do direito penal de exceção são revisitados e reanimados na atualidade, e o diagnóstico do direito penal contemporâneo não é animador. Ainda é certa a aposta na política criminal como solução para a delinqüência, a expansão penal parece não ter fronteiras, há uma histeria por hipercriminalização, a estabilização do projeto neoliberal provoca a mercantilização e a flexibilização de garantias penais e processuais penais, e o discurso punitivo alimenta a violência das agências de punibilidade. No Brasil, uma incompleta justiça de transição deixou por fazer as necessárias reformas institucionais, e a militarização dá o tom à política nacional. Além disso, apesar da fracassada história das operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, desde 1992, a ampliação da atuação das Forças Armadas na Segurança Pública parece estar longe do fim.
Nesse contexto, somado ao momento de popularização do debate da segurança pública na campanha eleitoral, foi instituído, por meio do Decreto 9.527 de 15 de outubro de 2018, a denominada Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil, descrita como medida competente para “analisar e compartilhar dados e produzir relatórios de inteligência com vistas a subsidiar a elaboração de políticas públicas e a ação governamental no enfrentamento a organizações criminosas que afrontam o Estado brasileiro e as suas instituições” [5]. O grupo será composto por representantes de 11 órgãos, majoritariamente das Forças Armadas e de setores da Polícia. A coordenação das atividades ficará a cargo do Gabinete de Segurança Institucional.
O grupo, portanto, compartilhará informações com o intuito de combater organizações criminosas, definidas pela Lei n. 12.850/2013 [6]. A mesma lei equipara, em seu art. 2º, inciso II, organizações criminosas às organizações terroristas. O terrorismo, por sua vez, é tipificado na Lei n. 13.260/2016, a chamada Lei Antiterrorismo, como atos realizados com a finalidade de “provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” [7] (art. 2º).
Ao mesmo tempo, pode-se mencionar outro risco iminente com a tramitacão, na Câmara dos Deputados, de Projeto de Lei (PL nº 5065/2016) sob requerimento de urgência, com vistas a alargar o espectro de ações de caráter terrorista. O projeto pretende alterar a Lei Antiterrorismo, em seu artigo 2º, incluindo como atos de terrorismo os cometidos por motivação ideológica, política, social e criminal com vistas a coagir autoridades, concessionários e permissionários do poder público. No Senado, tramita a Sugestão Legislativa nº 2, que visa “criminalizar o MST, mtst e outros movimentos ditos sociais que invadem propriedades”, e o Projeto de Lei nº 272/2016, que altera a Lei Antiterrorismo definindo como terror “incendiar meios de transporte, como ônibus, ou “intimidar certas pessoas, grupo de pessoas ou a população”, bem como atos por “motivação política, ideológica ou social”. O Projeto prevê, ainda, pena de reclusão de cinco a oito anos para quem abrigar pessoa que tenha praticado terrorismo, se tiver conhecimento do ato.
Caberá à Força-Tarefa de Inteligência a definição dos atos enquadrados como “motivação ideológica, política, social e criminal”. Estamos diante da possibilidade do combate ao crime justificar não apenas a repressão contra os delinqüentes, como também contra os dissidentes -considerados inimigos públicos – em uma prática caracterizadora de estado de exceção e alimentada pela idéia autoritária de periculosidade. No Estado Democrático de Direito, a criminalização dessas condutas é manifestamente inconstitucional, pois violadora da livre manifestação do pensamento.
Fundamental lembrar que, historicamente, por força, dentre outros fatores, da crença romântica nos poderes instituídos e de uma construção teórica normativista em torno dos direitos, os direitos institucionais foram sobrepostos aos direitos individuais, em um processo de fetichização das instituições, em que essas passam a ter titularidade de direitos aos quais devem estar submetidos os cidadãos. É a partir dessa lógica equivocada de hierarquização dos direitosque emergem justificativas como “em nome da ordem”, do “interesse público”, para a relativização de direitos fundamentais, e emergem os “discursos de exceção que absolutizam o combate à criminalidade e tornam reféns os direitos e as garantias individuais” [8].
Tudo parece bem orquestrado para que continuemos imersos, mas cada vez com maior profundidade, num Estado Policial que tutela o medo e se alimenta do risco e da vigilância. Salo de Carvalho nos lembra a assertiva de Maffesoli: “a intolerância e a inquisição não são atitudes de uma época ultrapassada, mas justamente um estado de espírito que se encontra frequentemente nas histórias humanas, aquelas, precisamente, em que se tende a considerar como frívolo o aspecto plural, matizado, mestiçado da existência global”. A exceção, já diria Agambem, é permanente. Permanente deve ser, também, a atenção aos desvios autoritários e à aposta falida na maximização penal.
Fonte DCM