No campo da militância social, tornou-se mais importante fazer um bom texto do que ter boas ideias. O deslocamento do espaço vivencial cada vez mais para o plano virtual da escrita e imagens mudou nossas relações e a maneira como usamos as palavras. Mas bons textos podem confundir quando não são expressões de boas reflexões e análises. O novo sentido dado ao verbo “lacrar” é a expressão perfeita disso
No teatro da guerra discursiva e persuasiva das redes sociais, é preciso, urgentemente, fazer a diferença entre “virtual eleitor de Bolsonaro” e “defensor de Bolsonaro“. São duas categorias de pessoas diferentes, com motivações distintas e, consequentemente, constituem-se interlocutores distintos em uma discussão e objetos diferentes na análise. Claro que a realidade não é tão classificável a ponto de não haver interseções e nuances entre esses grupos. Mas, embora também não saibamos exatamente onde acaba o rio e começa o mar nas águas salobras da foz, sabemos exatamente o que é um rio e o que é o mar. Ao confundir as duas categorias de pessoas, corre-se o risco de cometer erros táticos na luta discursiva ou de elaborar discursos parcialmente verdadeiros e parcialmente falsos que tentam se referir ao universo que sustenta o referido candidato nas pesquisas de opinião.
De forma superficial, o “tiozinho”, o “trabalhador humilde”, a “dona de casa”, “o lavador de carro”, etc., que pensam em votar em Bolsonaro porque os meios de formação de opinião lhes negam a compreensão da política e os programas de “jornalismo mundo cão” lhes oferecem uma visão simplista e deturpada dos problemas sociais e suas soluções (entre outros fatores), não são os que devem ser combatidos e criticados. Esses são apenas os “virtuais eleitores” desse candidato, que podem ser convencidos por esclarecimentos e por um bom trabalho educativo. Mesmo quando não são efetivamente convencidos, ainda assim não são os inimigos a serem vilipendiados, combatidos, humilhados e condenados.
Li muitos textos criticando os ataques antifascistas nas redes sociais sob alegação de que esses discursos têm como alvo as pessoas simples às quais foram negados os meios adequados de formação de consciência e que nunca viram solução para seus problemas pela via dos políticos e partidos tradicionais e que, por essa razão, iludiam-se no apoio a Bolsonaro. A crítica tem sentido apenas em parte. Ela perde a validade quando não faz a necessária distinção entre as pessoas que pretendem defender (os “virtuais eleitores”) e aquelas que pertencem a outro grupo, que são os “defensores” de Bolsonaro.
Diferentemente dos “virtuais eleitores” – que são gente simples, carente de reflexão política e levada por certo modismo que também deve muito ao sucesso do filme “Tropa de Elite” –, os “defensores” de Bolsonaro devem ser combatidos. São promotores do fascismo, racismo, machismo, homofobia, violência, justiçamentos, linchamentos, violações dos direitos humanos, desrespeito às garantias legais de proteção à pessoa humana, tortura, ditaduras, falsas notícias, etc. Essa categoria de pessoas não tem nada de inocente. É aqui que a batalha discursiva antifascista tem de ser travada com energia. Fazer contraponto ao discurso dos “defensores” de Bolsonaro e atacá-los impiedosamente nas redes sociais e meios de comunicação são ações legítimas e necessárias e fazem parte do combate no campo discursivo. Como se apresentam como inimigos da liberdade, da justiça, da democracia, do direito, das minorias e de todos valores que nos separam da barbárie, devem, em nome desses valores, ser enfrentados, ridicularizados, rejeitados, refutados. Deixar de travar essa batalha por confundi-los com o grupo dos “virtuais eleitores” faz com que suas ideias se propaguem com muito mais força e conquistem mais consciências.
Os “defensores” do candidato fascista, em sua quase totalidade, não podem ser convencidos por argumentos racionais – pelo simples fato de que os motivos para sua adesão e defesa do candidato não são racionais. Esse é um caso peculiar, pois não se trata de uma liderança com discurso elaborado de extrema-direita, de um liberal extremista teoricamente bem articulado, ou mesmo de uma figura como Hitler, que, apesar do conteúdo reprovável de suas ideias, conseguia discursar com sentido e até colocou seu projeto de poder em livro. No caso atual, trata-se de uma pessoa sem a menor capacidade de articulação de ideias, incapaz de compor um discurso com sentido e coerência. Manipula as informações a seu bel-prazer, inventa fatos, distorce a história, não se preocupa em conhecer a complexidade do mundo que o rodeia e destila ódio com assustadora frequência. Se pudesse apenas apontar, em um mesmo momento, tudo o que quer combater e tudo o que é contra e diante de seus defensores apenas grunhisse com energia e mostrasse os dentes, isso teria o mesmo efeito de sua fala. Trata-se de um fascismo despojado dos traços de justificação racional que outros tipos tiveram. Portanto, com esses, usar a razão como recurso discursivo tem o mesmo efeito de usar data-show como recurso didático em palestra para cegos.
No campo da militância social progressista, tornou-se mais importante, hoje, fazer um bom texto do que ter boas ideias. O deslocamento do espaço vivencial cada vez mais para o plano virtual da escrita e imagens mudou nossas relações e a maneira como usamos as palavras. Mas bons textos podem confundir quando não são expressões de boas reflexões e análises. O novo sentido dado ao verbo “lacrar” é a expressão perfeita disso. A ausência da diferença que apresentei acima torna admiráveis e “compartilháveis”, ao mesmo tempo, os discursos moralistas que condenam os ataques antifascistas dirigidos aos bolsonaristas – por acharem que eles atacam o primeiro grupo (os “virtuais eleitores”) – e os ataques e xingamentos generalizados, que deveriam ser dirigidos apenas aos “defensores”, mas que são estendidos aos que são simplesmente “virtuais eleitores” de Bolsonaro. Ambos os discursos, ao não fazerem a distinção entre os interlocutores ou o objeto da crítica, se tornam em parte verdadeiros e em parte falsos. Territórios e tropas distintas exigem táticas distintas, dentro de uma mesma estratégia. Confundi-las é prenúncio de derrota.
Para fixar e ilustrar a ideia do que seria um diálogo com um “virtual eleitor” e com um “defensor” de Bolsonaro, pensemos o seguinte. Se alguém explica para um “virtual eleitor” do referido candidato o que significa governar um país, as demandas da política econômica, a necessidade de propostas sólidas, a complexidade dos problemas sociais, a relação entre os poderes da República e faz o contraste disso com o vazio do discurso do candidato, que não entende de economia, de sociedade, que votou contra os direitos dos trabalhadores, que nunca apresentou um projeto importante na Câmara, cujos discursos se limita a frases fragmentadas, carregadas de preconceito e desconhecimento do tema, que propaga o ódio às minorias, que não conhece sequer a história do país, etc. pode ser que ele o ouça e até lhe dê razão. É possível mudar a cabeça desse grupo, por isso ele exige um discurso pedagógico, paciente, racional, amigável. É um campo em disputa.
Contudo, se alguém fala exatamente as mesmas coisas e dá explicações e argumentos até mais elaborados, fundado em dados, estudos e conhecimento consistente a um “defensor”, vai simplesmente ouvir reações do tipo: “chora, petista”; “Bolsonaro 2018”; “melhor Jair se acostumando”; “Luladrão”; “bandido tem que morrer”; “isso é fake news” etc., de forma escrita ou com memes. Não é possível argumentar com isso.
Fazer a diferença entre as duas categorias de pessoas nos protege ora de condenar quem é vítima, ora de “jogar pérola aos porcos”. Tudo é uma questão de discernimento e distinção.
Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo
Fonte Le Monde Diplomatique