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O golpe, as eleições e o neoliberalismo

As disputas políticas contemporâneas, não somente no Brasil, estão resumidas na seguinte questão: a democracia pode conviver com o neoliberalismo?

Há dois projetos de sociedade em disputa. De um lado, articulam-se os grupos, movimentos, partidos e as lutas políticas e emancipatórias em torno da construção de sociedades democráticas, inclusivas, igualitárias; doutro, associam os representantes do poder econômico, em sua fase rentista e improdutiva, concentrador de riqueza e renda – que garante a vida nababesca de 1% da população mundial.

Em primeiro lugar precisamos definir o que é democracia. Obviamente, uma visão liberal-conservadora e estreita define a democracia como um conjunto de regras procedimentais e formas de organização política: eleições livres, imprensa livre, partidos políticos, autonomia dos três poderes da república e acesso aos direitos civis de liberdade e igualdade. E, claro, propriedade privada.

Acontece que os pilares de uma democracia de fato, para além de democracias meramente formais, são um outro conjunto de valores sociopolíticos:

(1) a democracia cria, consolida e garante direitos;

(2) ademais, a democracia considera os conflitos, portanto, as disputas como algo legítimo. E, mais que isso, os conflitos, gerados por múltiplos interesses de grupos sociais, são necessários para o aperfeiçoamento da sociedade.

Mas, a pedra de toque da democracia de fato consiste

(3) na afirmação da soberania popular; ou seja, todo poder vem do povo e não do governante. O povo, através de eleições, escolhe o governante que recebe um mandato para exercer a soberania – que é exclusiva do povo.

Posto isto, façamos um parêntesis: fundamentalmente é preciso deixar claro e cristalino que quando o judiciário (ou qualquer outro poder ou grupo de pressão) tenta tutelar a soberania popular, de fato ocorre um estupro à democracia.

Quando um juiz de primeira instância grampeia uma presidenta e divulga o áudio em rede nacional, mancomunado com um oligopólio de mídia, ao arrepio da Constituição; quando o mesmo magistrado – que se exibe ao lado de políticos corruptos e da pior estirpe – algum tempo depois, estando de férias, passa por cima de uma ordem de um desembargador no exercício legítimo do cargo, desautorizando-o, e tem a conivência dos tribunais superiores, fica evidente que algo de podre e muito perverso está por detrás do sistema de justiça na sanha autoritária de tutela da soberania popular.

Retomemos.

Historicamente, o Brasil nunca foi verdadeiramente democrático. A violência multifacetada de um país marcado pela exclusão social, pela justiça seletiva, por uma elite de mentalidade escravocrata e pelo patriarcalismo gerador de múltiplas formas de opressão sempre impediram a efetivação de direitos para todos, por um lado e, por outro, desequilibram as disputas sociopolíticas à medida que a maioria do povo é sistematicamente esmagada por essa ordem social autoritária.

As relações de mando e obediência, características da hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios de uns pouco e uma subcidadania caracterizada pela não efetivação dos direitos à maioria da população.

Nesse contexto, em nosso país, a criação e efetivação de direitos é uma batalha quixotesca. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes, principalmente a partir de 2003, com Lula, deram alguns passos importantes para a mudança dessa sina. Mas, quando estávamos no caminho civilizatório, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia de fato veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, o golpe.

Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade (as elites econômicas articuladas pela turma do “yellow duck” e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados pela bancada BBB (Bala, Bíblia, Boi) no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça sob a batuta dos Estados Unidos) se uniram para golpear a trajetória de construção gradual rumo a uma sociedade verdadeiramente democrática.

O importante é perceber que por trás desse conjunto de atores sociais e políticos conservadores, autoritários e refratários à democracia real estão os interesses do poder econômico.

Para aniquilar a democracia de fato, esses segmentos antidemocráticos são os mentores de um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o mercado.

Assim, esse golpe neoliberal se baseia na ideia segundo a qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.

O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar os vários e legítimos interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos da maioria dos cidadãos.

No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido. É exatamente isso que o governo golpista está a fazer nesse momento. As contrarreformas aprovadas, todas elas, atendem aos interesses privados de uns poucos e contraria os interesses públicos da grande maioria do povo brasileiro. Ademais, tais reformas fraudulentas ferem de morte a soberania popular – dado que os eleitos em 2014 não apresentaram tais propostas em seus planos de governo e o povo não foi consultado sobre elas pelo governo usurpador.

Ora, uma conclusão é evidente: nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia de mentirinha, como essa que vivemos atualmente.

E é isso que está em jogo nas próximas eleições. De um lado, os candidatos que representam os interesses do mercado; doutro, o campo popular e democrático, comprometido com a democracia de fato, ou seja, com um país onde caibam todos os brasileiros.

Um último parêntesis: a classe média, cujo pêndulo (apoio ou rejeição) em boa medida define as eleições em nosso país, precisa decidir sobre o lado que vai se posicionar. Ou assume a democracia de fato, abrindo mão de privilégios, ou continuará serviçal dos interesses de uns poucos (batendo panela como verdadeiros idiotas e trabalhando desgraçadamente para, de vez em quando, fazer uma selfie com o Pateta, no decadente império do Norte).

Fonte Brasil 247