A classe trabalhadora, tendo como núcleo sua fração industrial, só surgiu no Brasil nos anos 1910, quando frações da classe latifundiária, em parceria com a burguesia comercial, investiram na produção de bens de consumo e de equipamentos industriais substitutivos de importados. Para operar os meios mecânicos e elétricos necessários a tal produção, encontraram no mercado trabalhadores migrantes da Europa e ex-escravos que haviam fugido da condição de agregados aos latifúndios e migrado para as cidades.
Essa nascente classe trabalhadora assalariada era extremamente minoritária em relação às demais classes e sofria todos os abusos que o capitalismo sabia e sabe perpetrar. Por outro lado, concentrada em algumas cidades do sudeste brasileiro e contando com migrantes que haviam vivenciado lutas e tido contato com o anarquismo, essa classe nascente conquistou precocemente certo grau de organização e de combatividade. O que explica as grandes greves de 1917, que levaram pânico aos capitalistas e à classe dominante latifundiária.
No entanto, embora as frações hegemônicas latifundiárias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro tenham decidido tratar a questão operária como caso estritamente policial, frações latifundiárias sulistas, abaladas com o crescente papel da indústria na economia das nações, com a revolução russa de 1917 e com a fundação de um partido comunista no Brasil, propuseram o desenvolvimento industrial tendo o Estado como indutor e o operariado como questão social a ser administrada pelo Estado para alcançar a paz social.
Essas propostas só começaram a ser colocadas em prática nos anos 1930, posteriormente à chamada revolução liberal. Porém, as condições eram difíceis: não havia capitais nacionais suficientes para investir fortemente na indústria; aos capitais estrangeiros só interessava investir na forma financeira; e a classe latifundiária dominante era contrária a qualquer reforma agrária que liberasse a força de trabalho agregada a seus latifúndios para servir de força de trabalho barato à indústria.
Em tais condições, ainda na primeira metade dos anos 1950, mais de 60% da força de trabalho brasileira continuava locada na agricultura, principalmente sob a forma de agregação, enquanto menos de 40% estava nas cidades, compreendendo a burguesia, a classe média proprietária e assalariada, e diversas frações da classe trabalhadora assalariada. Mesmo assim, nas greves de 1953 e 1957 a diminuta classe trabalhadora voltou a apresentar disposição de organização e luta.
Em termos quantitativos, porém, ela continuava bem menor do que o campesinato agregado e as frações urbanas da classe média. O verdadeiro salto no tamanho e na composição dessa classe, com suas frações operária, agrícola, comercial e de serviços, somente ocorreu nos anos 1970-80, acompanhando os grandes investimentos industriais das corporações transnacionais, as obras de infraestrutura necessárias a tais investimentos e a reforma capitalista do latifúndio.
Essas mudanças fizeram emergir não só uma nova geração operária, mas também um novo movimento sindical que liderou as greves de 1978, contribuiu decisivamente para o fim da ditadura militar, deu surgimento ao PT e contribuiu para que, pelo menos, medidas formais democráticas fossem incorporadas à Constituição de 1988. A essa altura, porém, a classe trabalhadora brasileira já sofria as mudanças negativas de mais de uma década de recessão e depressão.
Tais mudanças negativas foram agravadas nos anos 1990. O desmonte neoliberal jogou milhões de assalariados na precariedade e na exclusão do mercado de trabalho, enquanto as modificações tecnológicas introduzidas nas indústrias restantes reduziram substancialmente o número de trabalhadores necessários aos processos produtivos. Além disso, mudanças geracionais inevitáveis passaram a incorporar trabalhadores que não haviam vivenciado as experiências de luta dos anos 1970-80.
Mesmo assim, pela primeira vez na história do país um líder operário foi eleito presidente da República. Mas talvez por tudo isso, os governos Lula e Dilma, entre 2002 e 2016, tenham sido tentados a implementar políticas dúbias. Por um lado, produziram melhorias salariais indispensáveis que não tinham contrapartida na intensificação dos investimentos na produção industrial e na elevação da produtividade. Por outro lado, realizaram transferências de renda sem contrapartida de trabalho efetivo ou voluntário.
Dizendo de outro modo, na prática implementaram políticas paternalistas, pouco efetivas na educação que a luta de classe dos trabalhadores propicia. Tudo na suposição de que bastavam medidas de melhoria das condições salariais e de vida deles para contar com o crescimento econômico, com a oferta de mais empregos e com o apoio incondicional que tal política propiciaria. Na verdade, esqueceram que a luta de classes abrange tanto uma ferrenha luta ideológica, de conquista de corações e mentes, quanto a luta prática contra os aspectos negativos perceptíveis da vida real, capazes de deslindar os aspectos ideológicos que correspondem aos verdadeiros interesses materiais de classe.
Não é tão difícil perceber que, sem políticas efetivas de retomada da industrialização, de crescimento econômico relativamente elevado e de incentivo à luta educativa da própria classe trabalhadora por suas reivindicações, a melhoria das condições de vida dos pobres excluídos e dos trabalhadores apresentava defeitos estruturais. Defeitos que afetariam ainda mais, ideológica e praticamente, a classe trabalhadora ao deixarem que parcelas significativas dos excluídos melhorassem de vida sem precisar lutar pelo direito ao trabalho.
Em tais condições, a partir de 2011, quando as ondas da crise mundial capitalista começaram a bater mais pesadamente sobre os negócios da burguesia (que, como disse Lula, havia lucrado como nunca), as políticas de transferência de renda começaram a se mostrar insuficientes também para os trabalhadores e para a classe média. As manifestações de 2013 não sofreram qualquer contestação da classe trabalhadora e foram um indicador (não levado em conta) de que essa classe tendia a se manter imobilizada.
Impactada por década e meio de paternalismo e por crescente ineficiência dos serviços públicos de saúde, educação, transportes, saneamento etc., e pela propaganda avassaladora que incriminava dirigentes do PT por supostos envolvimentos em casos de corrupção, a classe trabalhadora estava despreparada para novas rupturas. Assim, fechou-se em si mesma quando o governo petista rompeu com seu programa eleitoral e decidiu-se por um ajuste fiscal compatível com a necessidade capitalista de reformas que possibilitassem a exploração desbragada da mais valia produzida pelos trabalhadores. E ficou paralisada quando a burguesia e frações diversas da classe média desencadearam o golpe jurídico parlamentar de 2016.
Em tais condições, para que a classe trabalhadora volte a conquistar seu papel de protagonista na luta contra as diversas frações nacionais e estrangeiras da classe burguesa, não basta que estas elevem ao extremo a exploração da mais valia produzida por seus empregados, que privatizem todas as empresas estatais brasileiras, que oprimam as liberdades democráticas e que afundem o país numa tragédia grega. Quase certamente será necessário que os partidos de esquerda, não só o PT, sejam capazes de impedir sua liquidação momentânea, sua marginalização ou sua transformação em linha auxiliar de frações da classe média ou da própria burguesia, e reconquistem seu papel de alternativa de governo e de poder.
O que demanda uma adequada análise das classes em movimento, confronto e alianças na sociedade brasileira (incluindo as burguesias das potências capitalistas e seus interesses concretos no cenário internacional e no Brasil), e os problemas concretos que cada uma delas enfrenta. Ou seja, é necessário investigar com seriedade os problemas concretos da burguesia e de suas diversas frações, assim como de sua classe antagônica, a classe trabalhadora assalariada, e de suas diferentes frações, sem descurar dos excluídos e da classe média. Só uma análise desse tipo pode levar à adoção de políticas que unifiquem, reorganizem e mobilizem a classe trabalhadora e os excluídos, a partir de suas reivindicações cotidianas, conquistem a maior parte da classe média e rachem a burguesia.
A necessidade de rachar a burguesia, ou fazer aliança com frações dela, não é apenas uma atitude tática para derrotar os golpistas. Num país capitalista atrasado e extremamente desigual como o Brasil, em que as forças produtivas estão muito abaixo do necessário para atender às necessidades de seu povo, a burguesia ainda terá papel importante no desenvolvimento delas, mesmo sob um Estado socialista. Portanto, traçar políticas nacionais de desenvolvimento das forças produtivas, principalmente industriais, é fator importante para dividir a classe burguesa, tanto estratégica quanto taticamente. Mesmo porque ela é a classe dominante, hoje hegemonizada pela burguesia agro e por burguesias estrangeiras, e têm influência sobre amplos setores das classes média, trabalhadora e excluída.
O mesmo se pode dizer da necessidade de conquistar setores importantes da classe média, parte considerável da população brasileira. Na política estratégica de desenvolvimento das forças produtivas e de transformação do Brasil num país avançado, frações consideráveis da classe média tendem a desempenhar papel importante, seja migrando para a burguesia, seja reforçando seu papel de classe intermediária assalariada de alto nível técnico.
Do ponto de vista tático, da mesma forma que frações da classe média jogaram papel importante na derrota dos trabalhadores, podem desempenhar papel idêntico na derrota das frações burguesas reacionárias. Mesmo porque as esperanças da classe média em ver seus problemas resolvidos com a queda do governo petista de coalizão naufragaram junto com o fracasso do governo Temer. A greve dos caminhoneiros é a marca principal dessa situação.
Fonte Correio da Cidadania