“O conceito de multidão ajuda a entender isso que chamamos de vertigem de junho, as mais diversas formas de se manifestar reunidas nos mesmos protestos: a irreverência e o lúdico ao lado da ação direta e da resistência; os palhaços e os black blocs; a ciranda e o espírito de guerrilha. Mas não estamos falando de tendências opostas que se anulam, quando a força e a beleza de junho encontram-se justamente em sua multiplicidade”, escreve Daniel Bustamante Teixeira, doutorando em antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisa sobre a Amazônia e mestre em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ) com dissertação publicada no livro Comunidades em movimento (São Paulo: Fonte Editorial, 2017).
Segundo ele, “as jornadas de junho foram muito mais do que o cálculo premeditado de um golpe, e que seus efeitos ultrapassam a polarização política à qual nos submetemos quando chamamos o outro lado de coletivo de mulas, do alto de nossa sabedoria humana e compreensão política”.
“Na dinâmica viva do acontecimento, – conclui o autor do artigo – também os novos dualismos que tentaram reorganizar o pós-Junho passaram a soar já antigos e até irrelevantes (a retroalimentação cultural dos grupos de direita e de esquerda, o falso jogo entre oposição e situação no sistema político, a divisão entre golpistas e golpeados – todos incapazes de fazer frente à fratura provocada pelos novos levantes)”.
Eis o artigo.
O ensaio a seguir foi adaptado a partir de uma palestra realizada na Universidade Estadual do Amapá em um curso de extensão sobre o Golpe de 2016 [1]. Antes de tudo eu gostaria de agradecer ao convite dos organizadores do curso para falar nesse espaço, que tem sido um palco aberto para a discussão política com abertura para diferentes perspectivas. Passados 5 anos da experiência vertiginosa de junho de 2013, topei o desafio de falar sobre o assunto, contando um pouco de minha própria vivência nesse acontecimento que marcou um ponto de virada na política brasileira.
Junho de 2013 está impresso nos corpos das milhões de pessoas que ocuparam as ruas e as redes naqueles dias. O que começou com poucos milhares de estudantes protestando contra o aumento da tarifa (os 20 centavos), transformou-se nas maiores manifestações de rua da história recente do Brasil, marcadas pela violência policial e pela resistência ativa das multidões. Falo aqui como alguém que esteve nas ruas desde as primeiras manifestações no Rio de Janeiro, evidentemente não como um representante de 2013 – o que seria já um não-entendimento do que se passou ali – senão como uma voz dentre tantas, mas também como um corpo que não se esquece da euforia e do medo que sentimos todos naqueles dias históricos.
Optei por dividir minha fala em três momentos tomando as jornadas de 2013 como um evento que não se esgota em si mesmo e que define a partir dele um antes e um depois. A noção de evento conota uma temporalidade outra que marca os protestos de junho para além de seus resultados pragmáticos – os que se fazem visíveis. O tempo do evento é o que explica a assombração que se tornou junho, o espectro que nos ronda – para usar a expressão de Marx – ou os ecos que não cessam de ecoar – (ou)vimos novamente ainda agora, na greve dos caminhoneiros. Entender junho como um evento, nesse sentido, é reconhecer que ele não terminou, que junho ainda está por vir, e que a radicalização democrática que se exigia está por acontecer, ainda que não haja nenhuma garantia que seja esse o desfecho de junho.
Antes de Junho
O primeiro ponto a ser destacado aqui é que as grandes manifestações de junho nos pegaram a todos de surpresa, os que estávamos nas ruas e os que estavam nos palácios, ninguém esperava naquele momento que os protestos tomassem as proporções a que chegaram. Nem a mais otimista ou pessimista das previsões havia colocado o terremoto de junho em seus cálculos, e no entanto ele aconteceu, inexorável como uma erupção.
Olhando em retrospectiva, 5 anos e um golpe depois, junho segue sendo um enigma, e o esforço que fazemos nesse primeiro momento é o de restituir o chão em que pisávamos antes de 2013, a própria crença que esteve firmada em nosso imaginário de que vivíamos em uma democracia, que seguíamos em direção ao progresso e de que o desenvolvimento era necessário. A estabilidade econômica dos 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, a proximidade do pleno emprego e o crescimento do PIB, a inflação sob controle, a inclusão social, os grandes eventos internacionais por chegar, todos esses indicadores corroboravam com a crença no progresso, mas falhavam em pressentir um descompasso entre as classes políticas e as classes populares, uma crise das instituições e da própria democracia representativa, em um processo mais amplo de crise da representação.
Aqui se junta o fato de que junho de 2013 não pode ser compreendido como um evento isolado, estando inserido em um contexto global de lutas pela radicalização da democracia. Em especial o ano de 2011, que para o filósofo esloveno Slavoj Zizek foi “o ano em que sonhamos de forma perigosa” [2], ano de revolução na Tunísia e no Egito, de motins por toda a Grécia, do movimento 15M dos indignados na Espanha, do Occupy Wall Street em frente ao maior símbolo da economia financeira, e também no Brasil, em menor escala, ocupações de praças centrais em diversas capitais, com destaque para Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
No Rio, os manifestantes montaram suas barracas na praça da Cinelândia e reivindicaram o direito de se apropriar, no melhor sentido da palavra, dos espaços públicos, chamando para si a responsabilidade do cuidado com a praça, ao que subjaz a ideia de que podemos nós mesmos gerir os espaços públicos sem depender do Estado. Durante um mês e meio a praça esteve colorida com as barracas e cartazes dos ocupantes, que se revezavam em tarefas de organização, limpeza, alimentação, atividades culturais, hortas urbanas, dentre tantos outros grupos de trabalho, em um verdadeiro laboratório de democracia. Naquele ano aprendemos um repertório de ações e de organizações políticas para além dos movimentos sociais constituídos e dos partidos, ambos afetados pelo grito de “Não Me Representa”, que aparecia nos gritos e cartazes das ocupações.
A recusa dos partidos e dos movimentos com lideranças centralizadas, a crítica à democracia representativa e ao desenvolvimentismo, a politização do espaço público, a auto representação como única democracia possível, são elementos que estiveram presentes em 2011, e que foram retomados em 2013, em proporções muito maiores. As jornadas de junho, para retomar o argumento, foram imprevisíveis, mas não foram um evento isolado, seja em relação ao ciclo internacional de insurreições – a começar pela primavera árabe –, ou em relação às próprias manifestações nacionais, como as ocupações das praças. Seguindo o argumento de Carvalho [3], pensamos no que ocorreu em 2013 da maneira como Zizek se referiu aos eventos ocorridos em 2011: como sinais do futuro. Novamente, nada pode garantir que esse futuro chegará. Como em Zizek, não há teleologia, apenas o reconhecimento de uma potencialidade particular.
Vertigem de Junho
A faísca que iniciou o incêndio das revoltas de junho, como se sabe, foi o aumento da tarifa de ônibus em diversas capitais, diga-se de passagem, os 20 centavos mais caros da história brasileira. Não é por acaso que o estopim tenha sido a tarifa do transporte público – como o cartaz que denunciava o óbvio em uma pergunta: “se é público, pq pagamos?” [4]. Há que se destacar aqui dois temas fundamentais que habitam o espírito junhista desde as primeiras manifestações: o direito à cidade e a centralidade da circulação. Não podendo nos delongar no assunto, diremos resumidamente que o direito à cidade aborda, dentre outras temáticas, a luta pela moradia e por justiça social, incluindo a acessibilidade e mobilidade urbana como direitos fundamentais; a centralidade da circulação, por outro lado, diz respeito às transformações estruturais no mundo do trabalho, em que a mobilidade e a circulação de mercadorias, mais do que a produção, se tornam centrais na dinâmica do capital.
As primeiras manifestações contra o aumento ocorreram no dia 06 de junho, em São Paulo, Rio de Janeiro, Natal e Porto Alegre, contando com poucos milhares de manifestantes e convocadas nas redes sociais por coletivos que possuíam histórico de lutas e debates, em que se destaca o MPL de São Paulo. Em um primeiro momento, portanto, os protestos eram contra o aumento da tarifa, e traziam um debate sobre o passe livre como um horizonte possível e desejável.
Em um segundo momento, após episódios marcantes de violência policial e da entrada em cena dos midiativismos – que se mostraram capazes de contrariar com imagens e vídeos postados ao vivo a narrativa que se tentava imprimir através da mídia tradicional –, os protestos passaram a ter uma dimensão ampliada (“Não é pelos 20 centavos”). Já não havia um centro nem um representante, e os cartazes e faixas multiplicaram-se nas ruas, contra a corrupção, em favor do SUS e da educação pública (“Enfia esses 20 centavos no SUS”), pela radicalização da democracia, e chegando ao limite de contrariar o grande símbolo nacional do futebol nos gritos e cartazes de “Não vai ter Copa”.
Também é verdade, como bem descreveu Cordeiro, que em algum momento “a resistência pacífica se transformou em resistência ativa, com a autodefesa das massas e o uso da contra-violência” [5], com a destruição de propriedade (bancos, prédios públicos, concessionárias) e as ocupações dos centros de poder. Os manifestantes quebravam assim o monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado, contrariando a própria legitimidade de um governo e de uma polícia que atuavam contra a própria população.
Outra característica marcante das jornadas de junho de 2013 em toda sua complexidade, é o advento da multidão nas ruas brasileiras. Diferentemente da noção de povo, unívoca e coesa, o conceito de multidão [6] designa um coletivo horizontal e heterogêneo, cujo agenciamento é capaz de acolher singularidades e se transformar em potência. Com efeito, o que se viu em junho de 2013, como bem observou Bosco em um artigo recente, “foi a transformação da massa em multidão” [7].
O conceito de multidão ajuda a entender isso que chamamos de vertigem de junho, as mais diversas formas de se manifestar reunidas nos mesmos protestos: a irreverência e o lúdico ao lado da ação direta e da resistência; os palhaços e os black blocs; a ciranda e o espírito de guerrilha. Mas não estamos falando de tendências opostas que se anulam, quando a força e a beleza de junho encontram-se justamente em sua multiplicidade. Daí também o caráter ingovernável das jornadas, sem o qual não as compreendemos:
(…) o que merece ser sublinhado é que todo o espectro político ficou aterrorizado com a energia insurreta dos primeiros dias de junho, com as táticas de mobilização poderosas (as ruas e as redes sociais), com a emergência de uma juventude sem rosto (“anota aí, eu sou ninguém”), com a impossibilidade de traduzir o acontecimento aparentemente desordenado na gramática corrente: quem é o líder? qual é a reivindicação? qual segmento ou interesse está por trás?, etc. Uma sublevação que não deseja tomar o poder, mas destituí-lo – eis algo que o sistema político como um todo não pode tolerar. A irrupção de desejos que extrapolam o negociável (…). Um desejo de rua, uma fome de imaginação, uma força de expressão que passou ao largo das mediações disponíveis (partidos, representantes, mídia), e, por conseguinte, deu a pressentir o Indomável. O Indomável não é o black bloc isolado ou em bando, mas é o que se depreende da multidão insurreta. O Indomável é o monstro social, que pode desafiar a família, a moral, a religião, os bons costumes, os valores do trabalho, da produção, da disciplina, as hierarquias várias, econômicas, sociais, raciais, profissionais, de gênero, as segmentações herdadas e sempre vigentes [8].
Depois de Junho
Depois de junho todas as nossas certezas se desvaneceram, e a própria sensação de que andávamos para frente foi brutalmente esmagada, primeiro com a violenta pacificação das jornadas, e em seguida, três anos depois, através do golpe parlamentar que tirou do poder o partido eleito nas urnas, colocando em prática uma agenda que também não foi eleita. Em uma primeira análise, parece mesmo que o futuro prometido por junho se transformou no pesadelo do golpe, e que as manifestações teriam sido um erro estratégico, fruto da manipulação da mídia ou de agentes externos, o próprio ovo da serpente em que foi gestado o golpe. A imagem exemplar dessa visão aparece no artigo já citado de Bosco, que afirma ironicamente que “junho de 2013 foi uma montanha que pariu um pato – e uma récua de cavalgaduras”.
O desafio e a aposta dessa fala é a de que as jornadas de junho foram muito mais do que o cálculo premeditado de um golpe, e que seus efeitos ultrapassam a polarização política à qual nos submetemos quando chamamos o outro lado de coletivo de mulas, do alto de nossa sabedoria humana e compreensão política. Distante das leituras que buscam explicar ou condenar o acontecimento de junho, pensamos que a importância de 2013 está onde ele nos escapa. Quer lutemos contra isso ou não, seja qual for a narrativa escolhida, o fato é que junho mudou qualquer coisa em nosso âmago, abalou nossas certezas e convicções, o próprio chão em que pisávamos. De uma hora para outra, o inconcebível se tornou o óbvio e fomos tomados não por um espontaneísmo cego, mas por uma clareza de quem acorda e vê.
Bastou que os levantes se renovassem a partir de condições reais da própria existência – a emergência por todo o Brasil – para mostrar, mais uma vez, como os modos de governar a nossa vida se tornaram obsoletos e incompatíveis com o espaço-tempo já aberto desde Junho de 2013 (e não só a relação com o sistema político, mas também com a cidade, o transporte, o ar que respiramos, a nossa alimentação etc.). Na dinâmica viva do acontecimento, também os novos dualismos que tentaram reorganizar o pós-Junho passaram a soar já antigos e até irrelevantes (a retroalimentação cultural dos grupos de direita e de esquerda, o falso jogo entre oposição e situação no sistema político, a divisão entre golpistas e golpeados – todos incapazes de fazer frente à fratura provocada pelos novos levantes).
É, portanto, o esforço em afirmar uma nova percepção já conquistada (aquilo que já vimos e não queremos deixar de ver) que marca a insistência do agenciamento político instável, flutuante e sem coordenadas prévias que emergiu em Junho de 2013. É ele que, a cada nova investida, recusa as máquinas duais que tentam domar e se sobrepor ao acontecimento. [9]
Passados cinco anos de junho de 2013 e ele permanece, se não como espectro, como promessa ou profecia:
Nada será como antes
Depois de Junho.
Já não eleição, tribunal ou reforma
que cale o descompasso.
Um eco na história
ressoa:
Amanhã vai ser maior
Amanhãs vão ser maiores
Fonte IHU