Em um livro póstumo – intitulado Stranieri alle porte [Estrangeiros às portas] e do qual o jornal Corriere della Sera, 09-07-2018, publicou o trecho que segue – Zygmunt Bauman afirma que “a única saída dos problemas de hoje e das desgraças de amanhã passa pela rejeição das insidiosas tentações de separação”.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Telejornais, jornais, discursos políticos, tuítes – avessos a oferecer temas e escapes para as ansiedades e para os medos públicos – não falam de outra coisa hoje senão da “crise migratória” que dominará a Europa, prenunciando o colapso e o fim do estilo de vida que conhecemos, temos e amamos.
A crise tornou-se uma espécie de nome em código, politicamente correto, desta fase da eterna luta conduzida pelos formadores de opinião para conquistar e subjugar as mentes e os corações. As notícias provenientes do campo de batalha estão agora prestes a desencadear um verdadeiro ataque de “pânico moral” (na acepção comumente aceita da expressão, definida pela edição inglesa da Wikipédia como “o temor, generalizado entre muitíssimas pessoas, de que qualquer mal ameace o bem-estar da sociedade”).
Enquanto escrevo estas linhas, uma nova tragédia – fruto de uma dura indiferença e cegueira moral – espera para atacar. Os sinais se multiplicam: gradualmente, mas inexoravelmente, a opinião pública, cúmplice da mídia sedenta de ouvintes, começa a se cansar de sentir compaixão pela tragédia dos refugiados.
Crianças que se afogam, a pressa para erguer muros, o arame farpado, os campos de acolhimento superlotados, os governos que disputam para acrescentar ao dano do exílio, da salvação rocambolesca, de uma viagem esgotante e perigosa a chacota de tratar os migrantes como batatas quentes: essas abominações morais já não são mais uma novidade, muito menos “viram notícia”.
Infelizmente, o destino dos traumas é de se converterem na tediosa rotina da normalidade, e o destino do pânico moral é de se consumar e desaparecer dos olhos e das consciências envoltas no véu do esquecimento. Quem ainda se lembra dos refugiados afegãos em busca de asilo na Austrália que se jogam sobre o arame farpado em Woomera, ou que são relegados aos grandes campos de prisioneiros criados pelo governo australiano em Nauru e na Ilha do Natal “para impedir que eles entrem nas águas territoriais”? Ou as dezenas de exilados sudaneses mortos pela polícia no centro do Cairo “depois que o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados os privou dos seus direitos”?
As migrações em massa certamente não são um fenômeno novo: elas acompanharam toda a era moderna desde o seu início (embora muitas vezes mudando de direção e, em alguns casos, até mesmo invertendo-a). Na verdade, a produção de pessoas “redundantes” (localmente “inúteis” – ou seja, numericamente em excesso e não ocupáveis, por causa do progresso econômico, ou localmente inaceitáveis – ou seja, rejeitadas – por causa de desordens, conflitos e choques causados pelas transformações sociais/políticas e pelas lutas de poder que daí derivam) faz parte do nosso “estilo de vida moderno”. E se cumula com as atuais consequências da profunda e aparentemente insolúvel desestabilização da região do Oriente Médio, seguida pelas ações políticas e militares arriscadas – e mal concebidas, terrivelmente míopes e declaradamente abortadas – das potências ocidentais. (…)
A única saída dos problemas de hoje e das desgraças de amanhã passa pela rejeição das insidiosas tentações de separação; em vez de olhar para o outro lado diante da realidade dos desafios de hoje – que se condensam no conceito “um único planeta, uma única humanidade” –, em vez de lavar as mãos e levantar barreiras contra as irritantes diferenças e dessemelhanças, e os estranhamentos autoimpostos, devemos ir em busca de oportunidades de encontro aproximado e de contato cada vez mais aprofundado, na esperança de chegar, desse modo, a uma fusão de horizontes, em vez de sua fissão induzida e artificial, mas cada vez mais exasperada.
Sim, estou plenamente consciente de que essa não é uma receita para viver uma vida sem nuvens e sem problemas, nem para realizar facilmente a tarefa a que devemos nos dedicar hoje. Ao contrário, ela anuncia tempos terrivelmente longos, inquietos e dilacerantes. Dificilmente poderá aliviar imediatamente as nossas ansiedades: no início, poderia até desencadear mais medos, agravar ainda mais as atuais desconfianças e animosidades. Mas eu acho que uma alternativa mais rápida, mais cômoda e menos arriscada não existe.
A humanidade está em crise: e, dessa crise, não há outra saída senão a solidariedade entre os homens.
Fonte IHU