1968, “o ano que não terminou”, começou com olhos atentos aos casos pioneiros de transplante de coração, na África do Sul, e à liberação, no Brasil, da pílula anticoncepcional – opositores viam nela um “genocídio”, e o Papa a condenaria em uma encíclica. Mas, nos meses seguintes, outros temas se imporiam, tornando “rebelião estudantil” e “conflitos” palavras constantes no noticiário.
Num tempo em que ainda não havia Internet, revoltas de estudantes eclodiram quase simultaneamente pelo mundo. Em Paris, a invasão da Universidade de Sorbonne por policiais seria o estopim de motins e greves que paralisaram a França. Na Praga da então Tchecoslováquia, a tentativa de construção de uma democracia socialista seria sufocada pelos canhões da União Soviética.
No Brasil, o ano seria marcado, entre outros fatos, pela morte do estudante Edson Luís de Lima Souto e pela passeata dos Cem Mil. Em outubro, cerca de mil jovens foram presos ao participar do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP). Entre eles estava a pernambucana Carmen Chaves, então aluna do curso de Medicina e secretária da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP). Para ela, 1968 representou “uma tentativa de mudança em todos os aspectos”, mas o Ato Institucional nº 5, decretado em 13 de dezembro, “jogou o Brasil em sua mais longa e tenebrosa noite de que se tem notícia”.
Foi também em 1968 que o advogado João Bosco Tenório Galvão, à época dirigente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Católica de Pernambuco, disputaria e conquistaria uma vaga na Câmara de Vereadores do Recife pelo MDB. Ele considera que “talvez 1968 tenha sido o maior ano da história política do Brasil”. Lembra que as influências que chegavam aqui vinham de todas as partes do mundo, incluindo o movimento sindical no Sudeste brasileiro, além do movimento negro e da luta contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos. “Os estudantes daqui olhavam para Paris e se sentiam motivados e solidários com o mundo”, acrescenta.
O ex-vereador, que seria sumariamente cassado pelos militares em 1969, relembra que, naquele momento, o movimento estudantil pregou o voto nulo. “Em várias cidades, uma parte minoritária filiou-se ao MDB. Me chamaram e aceitei. Fui o terceiro eleito, denunciando prisões, torturas e corrupções”, diz.
Setores da Igreja também não ficariam indiferentes ao momento político. O arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara, destacou-se na defesa dos direitos humanos e de reformas estruturais na América Latina. Com a criação da Ação Justiça e Paz, reforçou o apoio a movimentos sociais. E teve a casa dele metralhada por inimigos políticos em outubro daquele ano.
Ex-integrante da Ação Católica Operária, o padre Ernanne Pinheiro foi auxiliar de Dom Helder no período e, no ano seguinte, seria escolhido pelo arcebispo para suceder, na Pastoral da Juventude, o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, assassinado por paramilitares e agentes do Estado. Ele recorda a realização, em 1968, da II Conferência do Conselho do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (Colômbia), como uma nova perspectiva da Igreja no continente. A reunião traria reflexões que desembocariam, posteriormente, em correntes como a Teologia da Libertação. “Não estive lá, mas ajudei a preparar. Dom Helder nos transmitiu o resultado no Recife. Foi ali que a Igreja oficializou a opção pelos pobres. A repercussão de Medellín ainda hoje está presente”, afirma.
“O clima era de otimismo, de que os jovens iam mudar o mundo. Havia uma consciência latino-americana muito forte, a ideia de que ou a América Latina se desenvolvia em conjunto, ou não se desenvolveria. ” Padre Ernanne Pinheiro
Segundo ele, a conferência de Medellín foi uma tentativa de pensar o Concílio Vaticano II, em que a Igreja buscou se abrir mais para o mundo, no contexto de uma região marcada por pobreza e subdesenvolvimento. “O clima era de otimismo, de que os jovens iam mudar o mundo. Somaram-se tantas possibilidades… Havia uma consciência latino-americana muito forte, a ideia de que ou a América Latina se desenvolvia em conjunto, ou não se desenvolveria, destaca.
Revolução sociocultural
Já a cena cultural seria impactada, em 1968, pela Tropicália. Seria o ano das vaias, no Festival Internacional da Canção, a Caetano Veloso e aos Mutantes (ao defenderem: É proibido proibir) e a Chico Buarque e Tom Jobim (com a vencedora Sabiá) e da aclamação de Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. Os artistas lutariam contra a censura e sofreriam ataques como o praticado contra o elenco da peça Roda Viva em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Em Pernambuco, o Teatro Popular do Nordeste (TPN) participaria, dentro e fora dos palcos, de mobilizações em favor dos estudantes e contra a censura.
Naquele ano, o jornalista e escritor Marcelo Mário de Melo estava empenhado na organização do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do PCB que se propunha a atuar na luta armada e no movimento de massas. Após a morte do estudante Edson Luís, deixou o emprego num escritório de projetos e passou à condição de militante em tempo integral, dedicando-se à imprensa da organização. Ele, que seria preso de 1971 a 1979, enxerga em 1968 um momento coletivo de revolta ante as instituições, as forças políticas dominantes e os preconceitos da época, comportamentais e culturais.
“A eclosão das manifestações de massa em todo o mundo nos entusiasmava. Martin Luther King [cujo assassinato, em abril, deflagraria violentos conflitos raciais] formava para a luta pelos direitos civis e, aqui no Brasil, Dom Helder lançava o movimento Justiça e Paz. Tudo isso se juntava à efervescência cultural que transbordava nos festivais de música, nas peças teatrais, no movimento estudantil e nas primeiras greves operárias, em Contagem (MG) e Osasco (SP)”, descreve. “Foi uma explosão que acendeu estrelas, muitas delas ainda brilhando. As mudanças se refletiram em mais abertura das instituições estudantis, na pedagogia, no conceito de democracia, nas ideias, nas químicas artístico-culturais diversas”, emenda.
CONTRACULTURA – Nadja Brayner vê na rebeldia daquele momento uma reação a valores sociais ultrapassados, falso moralismo, repressão sexual e injustiças sociais.
Para Nadja Brayner, que era tesoureira, à época, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife (hoje UFPE), a rebeldia que se espalhou pelo mundo naquele ano foi uma reação a valores sociais ultrapassados, falso moralismo, repressão sexual e injustiças sociais. Aquele foi um momento também, na visão dela, de tomada de consciência sobre a possibilidade do surgimento de um novo mundo para além da bipolaridade da Guerra Fria. “A Guerra do Vietnã era a expressão real e simbolicamente forte do poder das grandes potências contra os chamados países do Terceiro Mundo. No caso do Brasil, a luta contra a ditadura civil-militar se traduzia na luta cotidiana contra a repressão, o autoritarismo e todo tipo de censura”, observa.
Sobre os legados de 1968 e possíveis semelhanças com 2018, as opiniões divergem. Marcelo Mário de Melo considera que não há paralelo com o momento atual, que tem “o tom cinzento do Governo Dutra, que administrou retrocessos institucionais por meio do golpismo jurídico-parlamentar”. Para João Bosco, muitas lideranças de 1968 assumiram o poder e se corromperam, enquanto outras continuaram com seus sonhos e atividades. “A nova geração de juízes, procuradores, empresários, profissionais liberais e mulheres nos fazem crer no futuro do Brasil”, afirma.
RETORNO – “A volta a 1968 é importante para a gente ver a possibilidade de reencantamento do mundo”, acredita o historiador Antônio Paulo Rezende. Foto> Jarbas Araújo
Carmen Chaves pontua que, se em 1968 havia um regime ditatorial militar declarado, em 2018 vive-se “sob um golpe financeiro disfarçado”, em que direitos são retirados por Medidas Provisórias, e riquezas nacionais “são vendidas a preço de banana”. Apesar de pessimista com a conjuntura do País, padre Ernanne considera que o Papa Francisco aponta para uma esperança. “Isso aconteceu no tempo da ditadura militar, quando a gente vivia um momento de depressão, e o Concílio Vaticano II iluminou tudo de novo que vinha. Hoje há, novamente, pessimismo com o momento político do País e otimismo em relação às perspectivas da Igreja”, sublinha.
O historiador Antonio Paulo Rezende, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), considera que as revoltas de 1968, no contexto global, vieram de um sentimento de saturação social. A partir dele, a crítica passaria da economia para a lógica de vida, propondo a afirmação do indivíduo como sujeito autônomo. Nessa visão, segundo ele, 2018 retoma a busca por alternativa num cenário diferente, no qual o capitalismo é hegemônico no contexto da globalização. “Vivemos numa sociedade administrada. Nossas ações são previsíveis, e o nosso tesão é jogado para o espetáculo. A volta a 1968 é importante para a gente ver a possibilidade de reencantamento do mundo”, reflete.
Para acesso a matéria completa clique aqui
Fonte Alepe