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Reformar a Constituição: da discussão necessária ao irrealismo político

A ideia de “enxugar” a Constituição para retirar poderes do STF e instaurar o semipresidencialismo, impedindo a alta corte de bloquear atos do Executivo e do Legislativo e diminuindo suas bases legais para dirimir conflitos políticos, é inconsequente e danosa para o País.

O artigo é de José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas, publicado por O Estado de S. Paulo, 13-05-2018.

Eis o artigo.
Entre as ideias produzidas ultimamente na aridez do serrado, circulou há alguns meses uma proposta de substituição do atual sistema de governo por um modelo semipresidencialista nos moldes vigentes na França, desde 1958, e em Portugal, desde 1983. A discussão ganhou algumas manchetes dos jornais, mas logo foi relegada para pé de página por causa, entre outros motivos, do enorme descompasso entre mecanismos institucionais e doutrinas europeias, de um lado, e as condições socioeconômicas, políticas e culturais brasileiras de outro. Foi mais uma demonstração do que dizia Oliveira Vianna há décadas – “nossos políticos, legisladores e dirigentes governamentais não conhecem, e mesmo desdenham conhecer, o país e o povo que dirigem” e para o qual legislam.

Às vésperas do trigésimo aniversário da Constituição, e em meio ao turbilhão de críticas de que o STF estaria exorbitando ao interpretá-la, agora se fala numa proposta que recoloca novamente Oliveira Vianna como leitura obrigatória. Para conter a corte suprema e ao mesmo tempo evitar os riscos e as contingências de uma revisão constitucional, a ideia é desidratar a Carta de 88 por meio de Propostas de Emenda Constitucional que suprimiriam parte do texto vigente. Em outras palavras, trata-se de uma estratégia de “enxugamento normativo” mediante a revogação de determinadas matérias constitucionais e/ou sua transferência para a legislação infraconstitucional com o objetivo de (a) reduzir a jurisdição e as competências da corte no exame dos conflitos políticos inerentes ao processo legislativo e (b) neutralizar um ativismo de inspiração neoconstitucionalista de alguns de seus ministros, principalmente os que almejam “fazer avançar a história”. Em outras palavras, quanto menor for a Constituição, menor será a base legal para que o STF possa intervir em atos e matérias de alçada do Legislativo e do Executivo. Quanto mais princípios forem expurgados da Carta, menores seriam os poderes do STF e a discricionariedade de seus ministros. Por consequência, menor seria a possibilidade de judicialização da vida política e da administração pública. O “enxugamento” da Constituição seria a resposta mais eficaz ao protagonismo da mais alta corte do País, que estaria avançando sobre a autonomia dos demais Poderes julgando a Constituição, em vez de aplicá-la – afirmam os defensores dessa estratégia.

Tomada pelo seu valor de face, a proposta tem lá sua engenhosidade. Analisada de modo cuidadoso, porém, configura mais uma tentativa de deter o STF, com o agravante de seus defensores relegarem para segundo plano não só os problemas metodológicos de hermenêutica constitucional, que não são poucos, mas, também, questões fundamentais do próprio regime democrático. Uma dessas questões envolve a própria especificidade do direito, que é a de se obrigar a oferecer uma decisão a todos os casos qualificados como jurídicos. Outra questão diz respeito ao Judiciário, que exerce atribuições preordenadas pelo direito. Do intercruzamento dessas questões resulta o chamado princípio do non liquet – ou seja, a proibição de denegação de justiça que obriga os tribunais a dar uma decisão a todos os casos jurídicos que lhes são submetidos. O que os compele, por consequência, a dar uma resposta tanto aos casos simples, os mais corriqueiros, quanto aos casos difíceis, aqueles para os quais a legislação prevê várias normas que propiciam sentenças distintas, seja porque as normas são contraditórias, seja porque não haveria uma norma clara a ser aplicada.

Por causa do princípio do non liquet, os tribunais não podem deixar de receber e julgar, por exemplo, os recursos impetrados por minorias inconformadas com derrotas no plano político, procurando revertê-las judicialmente. Se é verdade que não cabe à Justiça tomar para si escolhas políticas próprias do Executivo e do Legislativo, também é verdade que muitas vezes ela é provocada a fazê-lo, como nesses casos. No mesmo sentido, os tribunais são obrigados a suprir omissões do legislador, por provocação de partidos, sindicatos, associações empresariais e ONGs, bem como a exigir dos poderes públicos a implementação de programas e de medidas que concretizem a vontade constitucional. Têm, ainda, entre outras atribuições, o dever de fiscalizar a submissão dos atos governamentais e legislativos às decisões judiciais fundamentadas em normas constitucionais resultantes de vontades majoritárias. E se for identificada alguma inconstitucionalidade nos atos do Executivo e nas leis aprovadas pelo Legislativo, o Judiciário pode bloquear as decisões da maioria. Aprofundando o argumento, se no passado as Constituições se limitavam a definir a organização e a separação dos Poderes e a elencar um rol de direitos civis e garantias fundamentais, agora elas incorporam não só direitos sociais, econômicos e culturais, mas, igualmente, uma ampla gama de normas diretivas e programáticas. Hoje, as Constituições não são apenas instrumento de limitação do poder do Estado e definição das regras do jogo. Também buscam criar condições de realização de justiça substantiva, o que as obriga a ir muito além dos procedimentos formais. E isso recoloca na agenda pública, de modo mais intenso do que no passado, o problema do alcance e, principalmente, da efetividade das normas constitucionais.

Nesse cenário, há um problema que os defensores da proposta de “enxugamento constitucional”, como estratégia de redução do alcance das decisões do STF e da discricionariedade de seus ministros, parecem não dar o devido valor. Para tornar a Constituição escoimada de princípios e voltada basicamente às regras do jogo, é preciso que houvesse na sociedade brasileira práticas sociais sedimentadas – ou seja, costumes, rotinas e expectativas comuns de justiça. Contudo, como essa sociedade é marcada por níveis altamente iníquos de concentração de renda, forte exclusão social e agudas disparidades econômicas, setoriais e regionais, os mecanismos de formação de vontades coletivas estão erodidos e o contrato social se encontra esgarçado. Em vez de práticas sedimentadas e compromissos de reconhecimento recíproco, o que se tem são fraturas sociais, intercruzamento de conflitos e crescente anomia da vida urbana, em cujo âmbito não há valores comuns enraizados e parte do poder se estabelece fora dos espaços institucionais, como se vê nas comunidades do Rio de Janeiro, onde as Forças Armadas não conseguem impor a ordem legal à ordem normativa do narcotráfico em determinadas áreas.

Nada disso é novo. Em menor grau, essa realidade já existia à época da Assembleia Constituinte, entre 1987 e 1988. Diante do desafio de obter padrões mínimos de consenso para a Carta que estava sendo redigida, os constituintes não tiveram outra saída a não ser compor uma Constituição com regras precisas e objetivas, quando disciplinavam comportamentos habituais e rotineiros, e normas programáticas ou principiológicas, quando tinham de legislar para os comportamentos cambiantes e antagônicos. Essas normas principiológicas, como já disse em outras oportunidades, destacam-se por seu conteúdo aberto. Ou seja, por uma vagueza deliberada que nada mais é do que um expediente retórico, uma técnica pragmática, que permitiu aos constituintes persuadir os cidadãos, independentemente de suas diferenças e divergências, de que suas reivindicações foram acolhidas. Ao propiciar a estabilização ou calibração de expectativas normativas, esse expediente – permitiu aos constituintes a colocar lado a lado no texto constitucional ideias muitas vezes contraditórias, quando não conflitantes – é bastante conhecido nos meios jurídicos. E quando essas normas de conteúdo aberto são aplicadas pelos tribunais, os magistrados são obrigados a “fechá-las”, dando-lhes um sentido concreto ao aplicá-las no caso concreto sub judice. O que os converte em verdadeiros co-legisladores, rompendo com isso as fronteiras e distinções funcionais entre o Legislativo e o Judiciário.

Ao não dar o devido valor a esse cenário, os defensores da estratégia de redução dos poderes e do alcance da atuação do STF, por meio do enxugamento da Constituição, retrocedem para um constitucionalismo típico dos séculos XVIII e XIX, limitado à definição das regras do jogo. De fato, a corte tem feito trapalhadas nos últimos tempos, primando pela incoerência, pelas imprecisões doutrinárias e pela falta de previsibilidade de suas decisões. No entanto, isso decorre, basicamente, da falta de envergadura de alguns de seus integrantes ou de excesso protagonismo de outros. E não, necessariamente, de uma Constituição que, se por um lado contém normas desestabilizadoras das finanças públicas, especialmente as baseadas na lógica de interesses corporativos organizados, por outro contempla regras que estabelecem limites para o crescimento do gasto público e institucionalizam o princípio da responsabilidade fiscal. Que a Constituição é prolixa e extensa, tendo de ser adequada a uma economia que se transterritorializou e a um mundo conectado em tempo real, isso é evidente. O problema está na maquinação de saídas finórias e espertas, que podem virar bicho e comer seus formuladores. E é justamente esse o caso da tese do enxugamento constitucional.

Ao sugerir a depuração da Carta de 88 com o objetivo de deixar os ministros da mais alta do país corte sem base legal para determinar o bloqueio dos atos do Executivo e do Legislativo, os defensores dessa estratégia parecem não levar em conta os riscos inerentes à supressão dos laços normativos definidos pela Constituição que ainda vinculam cidadãos, grupos e classes numa sociedade tão heterogênea e conflitiva como a brasileira. Eles desconhecem – ou talvez subestimem – a realidade. Imaginam, ingenuamente, que a menor presença da Constituição – e, por tabela, da atuação do STF – pode levar a sociedade à auto regulação e à auto composição de interesses. Esquecem-se, assim, do esgarçamento do contrato social acima mencionado. Mais precisamente, esquecem-se da guerra – no sentido literal do termo – que tem sido travada em certas áreas urbanas e em certos segmentos sociais, onde o que prevalece é o princípio de que quem não é amigo (ou comparsa) é inimigo – e, como tal, tem de ser eliminado. Metaforicamente, o “enxugamento constitucional” nada mais é do que uma tentativa inconsequente de se serrar o galho onde se está sentado.

Fonte IHU