O processo que culmina com a condenação e prisão de Lula agrava a crise terminal da Nova República e catalisa a derrocada do lulismo. Os dois fenômenos confundem-se e reforçam-se reciprocamente. Eles revelam a absoluta impossibilidade de conciliar capitalismo, democracia e igualdade social nas economias de origem colonial submetidas a violentos processos de reversão neocolonial.
A falência do pacto político materializado na Constituição de 1988 transforma a política nacional num pântano. A célere punição de Lula, quando os processos contra Renan, Jucá, Temer e Aécio permanecem indefinidamente engavetados, escancara os atropelos, a seletividade e a impunidade que caracterizam um sistema judiciário arbitrário que, no melhor estilo “para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei”, funciona com rigor máximo para os pobres, com total leniência para os ricos e de maneira casuística para os que não são amigos do rei.
As pressões sobre as decisões do Supremo, tanto as oriundas das Forças Armadas pela punição de Lula como as provenientes do partido da “estanca a sangria” pela impunidade dos políticos corruptos, revelam a precariedade das instituições que deveriam dar sustentação à República. A indiferença, mas, sobretudo, a passividade da população em relação à prisão do ex-presidente indicam a profunda descrença das massas no sistema político.
Por fim, a ausência do principal candidato do pleito presidencial de 2018 compromete ainda mais a já ínfima legitimidade do sistema político.
A crise do padrão de dominação é estrutural e irreversível, pois, nas condições de uma profunda crise econômica, a polarização da luta de classes inviabiliza a conciliação entre o capital e o trabalho.
Para os de cima, a democracia brasileira é excessiva e deve ser reduzida. A guerra aberta contra os trabalhadores como forma de recomposição do padrão de acumulação de capital exige que a vontade política da classe trabalhadora seja anulada. A preocupação política do andar de cima é como conter a rebeldia dos de baixo.
Para os de baixo, o espaço democrático é insuficiente e deve ser ampliado. A materialização da luta por direitos sociais requer o fim dos privilégios seculares responsáveis pela reprodução do regime de segregação social. Foi essa a mensagem inequívoca da juventude que protagonizou as Jornadas de Junho de 2013, da primavera das mulheres de 2015 que contribuiu para a queda de Eduardo Cunha, dos estudantes que ocuparam as escolas em 2016, dos trabalhadores que fizeram a greve geral de abril de 2017, da população que saiu às ruas em março de 2018 para protestar contra o assassinato de Marielle e Anderson e dos funcionários públicos paulistanos, professores da rede municipal à frente, que, com suas manifestações maciças, derrotaram o projeto de reforma da previdência de Dória.
A prisão do ex-presidente acelera a exaustão do lulismo como referência política da classe trabalhadora brasileira. Mesmo com a presença de três candidatos à Presidência da República e de toda a liderança do movimento social que gravita em torno do PT, no momento decisivo a massa trabalhadora não compareceu ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. A liderança nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República não se traduziu em solidariedade concreta. Os trabalhadores não perdoaram as traições que os deixaram desarmados para enfrentar a ofensiva do capital contra seus direitos.
Destituído da energia que brota das ruas, o lulismo foi reduzido à absoluta impotência. Pensando muito mais em sua própria conveniência do que nos interesses estratégicos dos trabalhadores, Lula tirou as consequências práticas da situação. No momento derradeiro, seguiu as instruções de seus advogados e apresentou-se docilmente à Polícia Federal.
Sem coragem para ultrapassar os limites da ordem, Lula caiu nos braços do Jucá. Seu destino depende agora do sucesso da operação “estanca a sangria”, à espera de que “um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo” possa salvá-lo de uma longa temporada na cadeia.
Na esperança de virar semente, antes de abandonar o palanque Lula passou o bastão para as novas gerações. No entanto, para além de sua vontade, a crise do lulismo, com ou sem Lula, é estrutural. Ela é determinada, de baixo para cima, pelo descolamento da classe trabalhadora da ilusão de que soluções parlamentares, patrocinadas pela esquerda de uma ordem capitalista particularmente antissocial, antinacional e antidemocrática, possam resolver os problemas fundamentais do povo. Sem capacidade de mobilização social, o lulismo não sobrevive como projeto político.
A criação, o auge e o ocaso do PT confundem-se com sua capacidade de mobilização da classe trabalhadora. Nadando contra a corrente, na década de 1980, o PT conquistou seu espaço na política brasileira porque colocou o povo na rua. Acomodando-se às determinações da ordem, trilhou seu caminho para o poder nos anos 1990 porque rebaixou seu programa e desmobilizou os trabalhadores. Finalmente, em 2003, chegou ao Planalto porque firmou o compromisso explícito, formalizado na Carta aos Brasileiros, de seguir fielmente as exigências do capital e conter o descontentamento das classes subalternas.
Em 2013, atropelado pelas Jornadas de Junho, o PT perdeu toda sua funcionalidade para o capital porque não foi capaz de tirar o povo da rua. Em 2016 foi apeado do governo, sem nenhuma resistência real, porque não convocou o povo para defender sua presidente, pois sabia que o povo não iria às ruas.
No processo de progressiva acomodação às exigências do status quo, o PT rebaixou seu programa até sua completa mutação em um “melhorismo” esquálido, que o transformou na ala “menos pior” do neoliberalismo. A metamorfose do PT num partido perfeitamente enquadrado nas exigências da ordem, com todos os vícios e distorções da política burguesa, e o acirramento da luta de classes minaram as bases do longo ciclo político que transformou o partido de Lula na principal referência política da classe trabalhadora brasileira.
Nas condições históricas extraordinariamente adversas de uma sociedade integralmente submetida à lógica dos negócios, a estratégia de fazer o possível em condições impossíveis – a quintessência do lulismo – deu com os burros n’água. O círculo vicioso do subdesenvolvimento é implacável. Não surpreende que tudo que parecia sólido tenha se desmanchado no ar. As narrativas que edulcoram os governos petistas ocultam a realidade. Os problemas que envenenam a vida nacional, em todas as suas dimensões, são incompreensíveis se desvinculados das terríveis contradições gestadas nos treze anos de Lula e Dilma.
Os elevadíssimos índices de abstenção e de votos nulo e branco e o crescente recurso a formas de ação direta como meio de manifestação política revelam que os brasileiros não se sentem representados pelos partidos convencionais e buscam novas formas de expressão de suas vontades políticas. Nessas condições, a redução da política à opção binária Lula ou fascismo é uma perigosa armadilha.
Ao negar a possibilidade de uma terceira via, desconsiderando qualquer alternativa que questione os parâmetros da ordem estabelecida, a consigna “Somos todos Lula” deixa a esquerda socialista refém de uma institucionalidade historicamente condenada e de um programa político rebaixado e anacrônico. Em nome da necessidade de uma frente eleitoral entre os partidos de esquerda contra o fantasma do fascismo, prioriza-se o campo minado da disputa parlamentar de cartas marcadas, em detrimento da mobilização independente da classe trabalhadora em defesa de seus direitos imediatos e por reformas sociais estruturais.
Trata-se de uma estratégia simplesmente desastrosa, pois o único antídoto efetivamente capaz de deter a escalada autoritária é a mobilização social. Na ausência dos trabalhadores nas ruas, a ruína do sistema político abre espaço para aventuras autoritárias, seja por meios civis velados, como os ensaiados por Temer na intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro, seja por meios militares abertamente ditatoriais, como os sugeridos por Bolsonaro e alguns generais. No entanto, sem colocar na ordem do dia a necessidade de mudanças capazes de criar as bases reais de uma sociedade democrática – programa que extrapola os limites da Frente Eleitoral -, não há como sensibilizar os trabalhadores a lutar pelas liberdades democráticas.
O núcleo da luta política gira em torno da disputa sobre o que colocar no lugar da moribunda Nova República. Existem três possibilidades históricas. O partido que se articula em torno do projeto “Estanca a sangria”, idealizado por Jucá, defende o prolongamento da agonia da Velha República por meio de uma grande conciliação nacional que coloque um ponto final na cruzada contra a corrupção. O partido do “Fora Todos reacionário”, expresso de maneira explícita por Bolsonaro e de maneira cada vez menos envergonhada pelos chefes militares, propõe a negação do resíduo democrático que ainda resta da Constituição de 1988 pela “solução ditatorial”.
Por fim, o partido das ruas, que se manifesta de maneira ainda difusa e embrionária, como ocorreu nas Jornadas de Junho de 2013 e nas crescentes manifestações de rebeldia contra o status quo, bate-se por superar a Nova República pela via da “ampliação da democracia e dos direitos sociais”, combinando Estado de direito e “igualdade substantiva”. O “Fora Todos” de baixo para cima, com conteúdo democrático e socialista, é a única resposta à crise política capaz de enfrentar a raiz dos problemas nacionais e deter o avanço da barbárie que envenena a sociedade brasileira.
O antídoto à guerra contra os trabalhadores e aos ataques contra o Estado de direito passa por mudanças econômicas, sociais e políticas de grande envergadura. Na ausência de um programa que postule abertamente a necessidade histórica da revolução democrática como única resposta civilizada à crise política nacional, o debate nacional será integralmente pautado pela agenda do capital, polarizando-se entre “conservadores”, que buscam protelar a agonia da Nova República, e “modernizadores”, que buscam em soluções autoritárias uma forma de garantir a ordem e o progresso.
No momento em que a classe trabalhadora começa a se deslocar do lulismo, em busca de outros caminhos para enfrentar a ofensiva do capital e resolver os problemas nacionais, a decisão da direção do PSOL de transformar a batalha eleitoral, organizada em torno da bandeira pela liberdade de Lula, no centro da conjuntura compromete perigosamente o mandato histórico de um partido que nasceu com a tarefa de superar o lulismo.
Mais do que nunca, a tarefa prioritária da esquerda socialista é construir um programa político, colado nas lutas concretas dos trabalhadores, que coloque na ordem do dia, como primeiro passo para a solução dos problemas fundamentais do povo, a urgência da luta por “Direitos Já!” e suas consequências necessárias, “Fim dos privilégios Já!”.
A gravidade do momento histórico exige a revolução democrática seja colocada como elemento central da conjuntura.
Fonte Correio da Cidadania