REALIDADE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E
E DAS ORGANIZAÇÕES POPULARES
Daniel Seidel
A luta pela transformação social se faz diariamente pela disputa de projetos de sociedade: o projeto que amplia e aprofunda a desigualdade social (promovido pelas elites econômicas, políticas e sociais do país, com aliados nas grandes corporações financeiras multinacionais) e o projeto que visa a conquista de vida digna e de igualdade social (defendido pelos movimentos sociais e organizações populares).
E é importante compreender que os movimentos sociais e organizações populares não atuam num campo aberto, mas minado por uma cultura política que se formou no Brasil, fruto da colonização, da escravidão, das ditaduras que já sofremos e da cultura consumista que tudo quer transformar em mercadoria: até as nossas vidas. Como nos ensina o mestre Paulo Freire, “precisamos identificar “o/a opressor/a” que carregamos dentro de cada um/a de nós”, para nos tornarmos verdadeiramente libertários.
Assim, podemos dizer que sete dinâmicas culturais, com consequências políticas marcam a cultura política com a qual lidamos no cotidiano de nossas lutas sociais: 1) a mentalidade colonizada (que valoriza o que “vem de fora” e despreza o que é próprio de nossos povos tradicionais e originários: como os povos indígenas, ribeirinhos, povos da floresta, geraizeiros, fundo de pasto, entre outros); 2) racismo contra negras e negros, afrodescendentes (fruto da escravidão, desprezando os valores, costumes, religiões, trabalho manual e físico); 3) clientelismo (troca de favores, oriunda do período do coronelismo, cultura do medo e da intimidação: “você sabe com quem está falando?”); 4) a cidadania conquistada apenas pelo trabalho (fruto das lutas pelos direitos trabalhistas, conquistadas na época de Getúlio Vargas, com a imposição da CLT, provocando desprezo pelas pessoas desempregadas e população em situação de rua, “só é gente quem trabalha”); 5) autoritarismo (“manda quem pode, obedece quem tem juízo”, gerada pelas ditaduras militares e civis que comandaram o Estado Brasileiro); 6) machismo (que patrocina a violência contra as mulheres e pessoas de identidade LGBTT) e 7) consumismo (tornando as relações descartáveis e valorizando “quem tem” e “quem aparenta ter”).
Foi nesta cultura política e com apoio das corporações financeiras multinacionais é que em 2016 ocorreu o Golpe contra a democracia no Brasil, destituindo-se do poder uma mulher eleita pelo povo e que está se implantando um modelo de estado pós-democrático (“não respeita as regras do jogo democrático estabelecido”) e neoliberal (“tudo em função do lucro”=”transformar políticas sociais e serviços públicos em ‘negócios lucrativos’”), com a legitimação do sistema de “justiça” do país.
Para se construir a resistência ao Golpe e resgatar a democracia, tendo em vista a implantação de um projeto de superação da desigualdade e conquista da justiça social, os movimentos sociais e organizações populares estão se rearticulando em Frentes e Fóruns: Frente Brasil Popular; Frente Povo sem Medo; Fórum das Centrais Sindicais.
Neste momento vivemos um processo intenso de debate para retomada do trabalho de base e construção da unidade de um Projeto Popular para o Brasil. Tudo isso porque em várias experiências de governos democráticos e populares, seja em nível municipal, estadual, do Distrito Federal e do Brasil, muitos movimentos sociais e organizações populares foram cooptadas, legitimando políticas públicas que trouxeram avanços concretos: geração de emprego; garantia de renda; conquista da casa própria; construção de cisternas; ampliação do acesso ao Ensino Superior; energia elétrica e água potável. Todavia não houve mudança do modelo econômico, nem democratização da comunicação. Muitas lideranças dos movimentos sociais e das organizações populares foram ocupar cargos nestes governos e se acomodaram, afastando-se das lutas concretas que a população mais empobrecida enfrentava. Dirigentes de sindicatos se aburguesaram e não frequentavam mais o “chão da fábrica”, servindo muitas vezes a interesses corporativos e reproduzindo uma cultura autoritária e consumista.
É condição para o resgate da democracia no Brasil essa retomada da participação e da atuação dos movimentos sociais e organizações populares. Nelas aprendemos a escutar e a respeitar a opinião das outras pessoas; aprendemos a construir coletivamente as estratégias de luta; promovemos educação política para o exercício da cidadania a partir de lutas concretas: por transporte público; pela Reforma Agrária; pelo reconhecimento dos direito das mulheres; pela igualdade étnico-racial e de gênero e pelo direito à diferença (LGBT); pelo saneamento básico (coleta seletiva do lixo, água encanada e de qualidade, tratamento de esgoto); pelo direito de ir e vir com segurança em nossas comunidades de periferia; pela moradia com serviços públicos básicos (saúde, educação, assistência social); pela preservação das águas e dos biomas (Amazônia, Cerrado, Pampas, Pantanal, Convivência com o Semiárido, Mata atlântica e litoral); pelos direitos das populações atingidas pelas barragens (hidrelétricas), pela mineração e grandes projetos do agro-hidro-negócio); pelo direito à cidade das pessoas e populações em situação de rua; pela organização e trabalho digno e reconhecido de catadores e catadoras de material reciclável); pela dignidade dos encarcerados e encarceradas; pelo trabalho digno e com direitos nos sindicatos e associações de trabalhadores/as; pelo direito das Crianças e Adolescentes e contra a redução da maioridade penal; pelo direito das pessoas idosas e das pessoas com deficiência; no enfrentamento a atuação das milícias e ao tráfico de drogas; no cuidado das famílias e pessoas em drogadição; enfim na luta pelos DHESCAs (Direitos Humanos, Econômicos, Socais, Culturais e Ambientais), com participação nos Conselhos de Direitos, Conferências, Campanhas, Plebiscitos e Iniciativas Populares.
Papa Francisco resumiu muitas de nossas lutas nos 3 Ts – Terra, Teto e Trabalho: “nenhum camponês sem terra; nenhuma família sem teto; nenhum trabalhar sem direitos”. Nos três encontros de diálogo com os Movimentos Populares que realizou incentivou para que os movimentos sociais e organizações populares não se intimidassem, reconhecessem seu valor, sua capacidade criativa (novas formas de trabalho, de moradia e de organizar para fazer as lutas ecossociais) e que “se metessem” em política, sem se deixar cooptar, não perder sua capacidade de questionar as estruturas de poder que mantém a desigualdade social e buscar construir o Bem-Viver.
Na caminhada das igrejas na América Latina e Caribe uma das maiores aprendizagens que fizemos foi a que cada pessoa em situação de exclusão social deve ser protagonista de sua libertação integral. Paternalismo ou assistencialismo não liberta ninguém, por isso é preciso “conversão permanente” na participação nos movimentos sociais e nas organizações populares para não reproduzir a mesma cultura política que combatemos e acolher os saberes populares de nossas tradições indígenas, negras e urbanas; aprender a resgatar espaços coletivos nos ambientes urbanos e rurais. A luta por políticas públicas é fundamental, fortalecendo a democracia participativa, mas o “Estado” sempre se coloca a serviço dos interesses do capital, por isso devemos disputá-lo, mas não alimentar ilusões: “quem salva o povo, é o povo organizado!”