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Evangelizar a partir da prática da justiça

Evangelizar a partir da prática da justiça 

O fio condutor de toda esta apresentação do ensino social foi o Evangelho.

O conflito social seja qual tenha sido a forma em que historicamente se apresentou, fez surgir na consciência cristã o grito de protesto: “isto não é cristão”.

Sem este grito, os crentes teriam sido absorvidos pelos mil tentáculos do materialismo, do paganismo, do ateísmo teórico e prático. Na profundeza da consciência cristã,ali onde Deus fala, nasceu uma voz. Essa voz se expressou de mil maneiras, em sábios e em ignorantes, em doutos bispos e em simples mulheres do povo, em sacerdotes e teólogos e em dirigentes sindicais. Expressou-se com usas palavras e às vezes, de forma mais convincente ainda, no testemunho de sues feitos.

O “fio condutor” do Evangelho aos poucos encontrou dois modos de expressão. Um, o testemunho vivo da consciência profética; outro o do ensino social da Igreja como serviço pastoral dos bispos e do Papa para todo povo de Deus. Não podemos separar um do outro porque, a seu nível e cada um a seu modo, são atos de evangelização.

Agora queremos aprofundar essa grande missão da Igreja: por que a justiça social é tão importante para a evangelização? O que há nela para que sua ausência seja considerada o motivo do humanismo ateu? O que há na justiça para que a própria Igreja julgue contradição e escândalo uma sociedade cristã sem ela? Estas são perguntas de fundo e interpela, a totalidade de nosso crer e de nosso viver. Para responder a elas nosso mártires deram sua vida, não só os mártires da fé mas também os da justiça.

Consideramos o tema em três pontos: 1. o Evangelho e a justiça social; 2. o escândalo da injustiça da sociedade cristã; 3. o humanismo ateu e seus desafios.

 

  1. Evangelho e justiça social

 

É evidente que a Evangelii Nuntiandi teve uma influencia decisiva em Puebla, assim como Populorum Progressio a teve em Medellín. O tema em Puebla é a evangelização no presente e no futuro da América Latina.

A semelhança entre EN e Puebla é surpreendente quando se comparam os títulos de seus capítulos: Cristo, Igreja, o que é evangelizar, conteúdo da evangelização, meios, agentes da evangelização.

O tema justiça social, no entanto, sofre uma deslocação significativa. Para Paulo VI é um tema tratado dentro do “conteúdo” da evangelização. Para Puebla, dentro de “o que é evangelizar”. Não é que exista uma oposição entre as duas perspectivas, pois do anúncio do Evangelho surge uma interpelação recíproca (e portanto, se explica no ato evangelizador, como transformação dos diferentes aspectos da vida humana, como acontece com a cultura, que Paulo VI coloca no capítulo “o que é evangelizar”).

No entanto, se nos ativermos ao acento que Paulo VI dá ao tema da justiça social como conteúdo da evangelização, o vemos incluído dentro de quatro conteúdos essências: o testemunho de amor do Pai, a realização da salvação em Jesus Cristo, o anúncio da vida futura e a interpelação da vida presente. Desses quatro, os três primeiros conteúdos são anunciados cada uma em um único número da ]exortação Apostólica (EN 26, 27 e 28), ao passo que ao quarto se dedicam os n. 29-39.

A “interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social” exige que a evangelização leve consigo “uma mensagem explícita, adaptada às diversas situações e continuamente atualizada sobre os diretos e deveres de todas a pessoa humana e sobre a vida familiar… sobre a vida em comum na sociedade, sobre a vida internacional, a paz, a justiça e o desenvolvimento; uma vida internacional sobremaneira vigorosa nos nossos dias, ainda sobre a libertação” (EN 29).

A libertação é um “dever” da Igreja, ela “tem o dever de anunciara a libertação… o dever de ajudar um tal libertação nos seus começos, de dar testemunho em favor dela e se envidar esforços para que ela chegue a ser total. Isso não é alheio à evangelização” (EN 30). Deve “suscitar cada vez mais nos ânimos de numerosos cristãos a generosidade para se dedicarem à libertação dos outros. Ela dá a estes cristãos ‘libertadores’ uma inspiração de fé e uma motivação de amor fraterno, uma doutrina social a que o verdadeiro cristão não pode deixar de estar atento, mas que deve tomar como base da própria prudência e da própria experiência, a fim de a traduzir concretamente em categorias de ação, de participação e de compromisso” (EN 38).

Quando Paulo VI diz “a Igreja relaciona, mas nunca identifica libertação humana com a salvação em Jesus Cristo” (EN 35), é evidente que está entendendo a libertação como processo exclusivamente histórico e como esforço exclusivamente dos homens. Porém, a “libertação, conforme ela foi anunciada e realizada por Jesus de Nazaré e conforme a Igreja apregoa” identifica-se com a salvação em Jesus Cristo (EN 31).

É dever da Igreja que a libertação seja “total” ou “integral”, como se diz em Medellín e Puebla. No entanto, entendida em sentido parcial, como “libertação humana”, não é alheia à evangelização devido a três laços muito fortes que a vinculam:

  1. Antropológico, porque o homem concretamente é “um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos” (EN 31);
  2. Teológico, porque “não se pode nunca dissociar o plano da Criação do plano da Redenção, um e outro abrangem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada” (ibid.)”;
  3. Evangélico, como a caridade, porque “como se poderia proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e autêntico progresso do homem?” (ibid.)

Embora unida por tantos laços, a “libertação humana” (não a integral, portanto, tal como a vive a Igreja na obra salvadora de Jesus) continua sendo um “projeto simplesmente temporal” com objetivos de uma perspectiva “antropocêntrica”, de “bem-estar material” e com atividades “de ordem política ou social”. Tudo isso é legítimo como esforço humano, mas insuficiente como missão de Igreja, cuja finalidade especificamente religiosa é a evangelização (cf. EN 32).

Mas exatamente a libertação evangélica (que é, sim, a missão própria e religiosa da Igreja) “deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o absoluto de Deus” (EN 33), inclui dentro de si, mas não se reduz “à simples e restrita dimensão econômica, política, social e cultural”, como não entende tampouco por libertação circunscreve-se “apenas ao campo religioso” (o que seria excluir e contrapor a libertação humana à de Cristo) (EN 33 e 34).

Portanto aquela justiça que nasce de uma visão de fé, que se fundamenta no Evangelho, não é alheia à evangelização.

  • A justiça não é alheia ao Evangelho porque pertence a um de seus conteúdos essências, a interpretação, a interpelação entre a vida humana pessoal e social e o Evangelho;
  • Não é alheia devido ao vínculo antropológico: o homem que recebe o Evangelho quer viver na justiça;
  • Não é alheia devido à redenção, porque esta chega até à injustiça que deve ser combatida e à justiça que deve ser restaurada;
  • Não é alheia porque o amor não pode ser anunciado sem se promover a paz e a justiça;
  • A justiça não é alheia porque todo esforço que se fizer para realizar a justiça na sociedade humana inclui-se na libertação integral de Cristo que aperfeiçoa e supera o trabalho humano, suas metas e aspirações, dando-lhes um sentido integral e absoluto.

A unidade íntima entre fé e justiça resplandece também, embora em forma negativa, em duas perspectivas:

O que acontece quando os que têm fé não praticam a justiça?

O que acontece quando os que não têm fé vêem os que a têm vivendo na injustiça?

Estas duas perguntas têm respostas bem concretas. Os bispos, em Puebla, estavam muito conscientes de que proclamar a fé, por um lado, e viver na injustiça, por outro, é um escândalo e uma contradição (DP 28 e passim).

Por outro lado, o humanismo ateu pretende justificar-se precisamente através da situação histórica daqueles que, tendo fé, vivem na injustiça. Ele considera a um obstáculo alienante para construir a justiça. Tal objeção não tem outra resposta a não ser a prática da fé que leva à justiça, sendo a fé assim entendida o objetivo fundamental e central da doutrina social da Igreja.  

 

  1. O escândalo da injustiça na sociedade cristã

 

A realidade de nossos povos é uma interpelação para a consciência eclesial: algo anda mal em nossa história, ao lado de tantos valores e aspectos positivos de nosso povo. “A realidade latino-americana faz-nos experimentar amargamente, até aos extremos limites, esta força do pecado que é a contradição flagrante do plano de Deus” (DP 186). Porque somos um continente evangelizado e batizado, este pecado não é estranho à nossa Igreja. A evangelização de nossos povos “foi suficientemente profunda para que a fé passasse a ser constitutiva de sua essência e da sua identidade” (DP 412).

A realidade do pecado já presente no momento inicial da evangelização: “A Igreja, em seu labor apostólico, teve de suportar o peso dos desfalecimentos, das alianças com os pobres da terra, de uma visão pastoral incompleta e da força destruidora do pecado” (DP 10).

A Igreja confessa com humildade que a “fé de nossos povos… nem sempre chegou à sua maturidade” (DP 342). “O cristianismo, que traz consigo a originalidade do amor, nem sempre é praticado em sua integridade nem mesmo para nós cristãos” (Mensagem 2c). “Nem todos os membros da Igreja têm guardado o devido respeito para com o homem e sua cultura” (DP 966). “A Igreja de hoje ainda não é aquilo que esta chamada a ser” (DP 231). Por isso, os bispos afirmam claramente em Puebla: “Neste mundo não conseguirá nunca a Igreja viver, em plenitude, sua vocação universal para a santidade. Permanecerá sempre composta de justos e pecadores. Mais: pelo coração de cada cristão passa a linha que divide a parte que temos de justos da que temos de pecadores” (DP 253). A Igreja, marcada pelo pecado de sues filhos, está “necessitada de permanente auto-evangelização, de maior conversão e purificação” (DP 228). Se existem carências na vida de fé de nossos povos, isso se deve à “insuficiente proclamação do Evangelho” (DP 173).

Qual é o pecado mais denunciado e confessado pelos bispos em Puebla? Sem ser o único pecado que se menciona, achamos que se pode afirmar que o conjunto dos documentos, as ênfases na promoção humana como dimensão evangelizadora, os compromissos e opções pastorais propostos, centralizam-se em torno do pecado da injustiça. Em que consiste esse pecado? Qual é a sua gravidade específica em nosso continente?

 

Como se manifesta o pecado da injustiça?

 

            A análise da realidade em Puebla ultrapassa o problema estritamente econômico-social. Na realidade se vai mais longe ao se afirmar que sua raiz no pecado, um pecado de injustiça que se encarna nas estruturas da sociedade.

 

  • Brecha crescente entre ricos e pobres

Os bispos constatam uma “brecha crescente entre ricos e pobres” (DP 28), que é produzida pela “apropriação, por uma minoria privilegiada, de grande parte da riqueza, assim como dos benefícios criados pela ciência e cultura” (DP 1208). Ao lado temos “a pobreza de uma grande maioria, com a consciência de sua exclusão e do bloqueio de suas crescentes aspirações de justiça e participação” (1208); tal situação contradiz uma das mais claras aspirações de nossos povos: “que reduza a brecha entre o luxo desmedido e a indigência” (133). Os bispos fazem eco e pedem “que não se alarguem as distâncias” (Mensagem 3n).

Tais fatos são evidentes e inegáveis: “Ninguém pode negar a concentração da propriedade empresarial, rural e urbana em mãos de poucos… a concentração do poder pelas tecnocracias civis e militares…” (DP 1263), tem “aumentado a marginalização de grande parte da sociedade e a exploração dos pobres” 1260), “de Medellín para cá a situação se agravou na maioria de nossos países” (DP 487).

O que significa isto concretamente? “A imensa maioria de nossos irmãos continua vivendo em situação de pobreza e até miséria, que se veio agravando” (DP 1135), “situação de pobreza desumana… mortalidade infantil, falta de moradia adequada, problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e sem proteção” (DP 29).

  • Uma brecha cuja raiz é o pecado

Esta afirmação é um eixo de interpretação da seção anterior. A visão pastoral, e não técnica, leva os bispos a buscar as causas éticas e não as político-econômico-sociais. “As angústias e frustrações, se as consideramos à luz da fé, têm por causa o pecado, cujas dimensões pessoais e sociais são muito amplas” (DP 73). O pecado imprime uma “marca destruidora” nas criaturas (281) que se tornam “estruturas de pecado” (ibid.), pois o campo social é espaço de pecado e de graça: “Nossa conduta social é parte integrante do nosso seguimento de Cristo” (DP 476).

Sem querer elaborar teologicamente com maior precisão a relação entre pecado e estrutura social, os bispos deixam, no entanto, alguns elementos: vêem o pecado como a raiz da injustiça (1258), pelo pecado “penetraram no mundo o mal, a morte e a violência, o ódio e o medo” (DP 185). Pelo pecado se produz “no plano das relações interpessoais a atitude de egoísmo, de orgulho, de ambição e inveja que geram injustiça, dominação e violência em todos os níveis, luta entre indivíduos, grupos, classes sociais e povos bem como a corrupção, o hedonismo, a exacerbação sexual e a superficialidade nas relações mútuas” (DP 328); o pecado é a “raiz e fonte de toda opressão, injustiça e discriminação” DP 517).

Além disso, o pecado se projeta objetivamente em situações: “estava destruída a convivência fraterna” (DP 185), é “força de ruptura” (281), “a crise de valores morais… a carência de sentido social, de justiça vivida e solidariedade… enfraquece e até impede a comunhão com Deus e a fraternidade” (69), “impregna os mecanismos da sociedade de valores materialistas” (70), “destrói a dignidade humana” (329).

A libertação de Cristo é antes de tudo libertação do pecado, mas é raiz de efeitos sócias e se projeta neles. Só Deus livra do pecado (cf. DP 281), devemos “concretizar a libertação que Cristo conquistou na cruz” (485). O Pai quis em Cristo “libertar nossa história do pecado” (740).

  • Especificamente, um pecado de injustiça

A América Latina está hoje “empenhada em superar a sua situação de subdesenvolvimento e injustiça” (DP 864). Não se trata simplesmente de miséria por falta de recursos, mas de desigualdade injusta: “o significativo progresso econômico que nosso continente alcançou demonstra que seria possível erradicar a estrema pobreza e melhorar a qualidade de vida de nosso povo” (21). Mas essa possibilidade real é frustrada porque “grupos minoritários nacionais, associados às vezes a interesses de fora, têm-se aproveitado das oportunidades que lhes oferecem estas formas envelhecidas de mercado livre, para se desenvolverem em proveito próprio e às custas dos interesses dos setores populares majoritários” (47). Grupos de leigos “não assumiram suficientemente a dimensão social de seu compromisso… por se aferrarem a seus interesses econômicos e de poder” (824). “Muitos deram mostras duma fé pouco vigorosa para vencer seus egoísmos, seu individualismo e apego às riquezas, agindo injustamente e lesando a unidade da sociedade e da própria Igreja” (966).

A injustiça nascida do egoísmo se expressa nos tipos de opções, pó exemplo, econômicas: “modelos de desenvolvimento que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos” (DP 37), ou políticas: “vê-se com maus olhos a organização de operários, camponeses e grupos populares e adotam medidas repressivas para impedi-la. Este tipo de controle e limitação não acontece com os sindicatos patronais, que podem agir com todo o seu poder para assegurar os próprios interesses” (44).

Se a pobreza é “produto de situações e estruturas” da sociedade (DP 30), o amor “deve tornar-se, sobretudo obra de justiça para com os oprimidos” (327).

  • Injustiça na nível das estruturas

A injustiça pode ser produzida por decisões estritamente individuais, mas não nos referimos a ela e sim à “injustiça institucionalizada” (DP 509, 562), pois a pobreza não é etapa casual, mas produto de situações e estruturas econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas (30). Injustiça em “modelos de desenvolvimento que exigem dos setores mais pobres um custo social realmente desumano, tanto mais injusto quanto não é compartilhado por todos” (50), “conflito estruturas grave: a crescente riqueza de uns poucos corre paralela com a crescente miséria das massas” (1209).

Portanto, embora a conversão se dê na identidade de cada pessoa, seus efeitos projetam-se para a transformação da sociedade. Por isso a Igreja considera missão sus chegar à sociedade nova através dos homens novos transformados pela graça: “Esta realidade exige, portanto, conversão pessoal e transformações profundas das estruturas” (DP 30). A Igreja “pede que todos os cristãos colaborem na transformação das estruturas injustas” (16). A dinâmica evangelizadora “procura a conversão pessoal e a transformação social” (362). A Igreja “insiste numa rápida e profunda transformação das estruturas” (438). “As leis e estruturas deverão ser animadas pelo Espírito que vivifica os homens e faz com que o Evangelho se encarne na história” (199). “A comunhão que se há de construir entre os homens abrange-lhes todo o ser desde as raízes do amor, e há de se manifestar em toda a sua vida, até na sua dimensão econômica, social e política” (215).

 

Qual é a gravidade deste pecado de injustiça?

 

            Se a injustiça estrutural ocorresse numa sociedade pagã e materialista, seria compreensível. O pior é que acontece numa sociedade que se diz cristã. Isso é um escândalo. Mas além disso, muitas vezes ser pretende justificar a situação como se fosse cristã. E isto é um escândalo maior porque inclui a manipulação do religioso.

 

  • Escândalo da injustiça?

“A brecha existente entre o luxo e a indigência” (DP 133), “a distância entre ricos e pobres, a situação de ameaça que vivem os mais fracos, as injustiças, as postergações e sujeições indignas que sofre, contradizem radicalmente os valores de dignidade e de irmandade solidária” (DP 452).

Os bispos afirmam, portanto, um fato contraditório: “são evidentes as contradições existentes entre estruturas sociais injustas e as exigências do Evangelho” (1257). A questão está fundamentalmente em sabermos, pela fé, que Cristo está nos pobres. “Essa situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (DP 31). Por esse motivo, a contradição com o ser cristão pode se chamada de “escândalo” (28).

A injustiça social constitui, portanto, uma interpelação, um desafio: “as profundas diferenças sociais, a extrema pobreza e a violação dos direitos humanos – que ocorrem em muitas regiões – são desafios laçados à evangelização (DP 90) porque ‘há cinco séculos estamos evangelizando a América Latina’ (342). Não se trata pois do fato da evangelização, mas da sua qualidade e do conteúdo; por isso as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança ideológica e da organização da convivência social e econômica de nossos povos” (437).

  • Legitimação religiosa da injustiça

A gravidade do pecada de injustiça se torna ainda maior quando quer ser legitimada como situação cristã. A falta de formação social (DP 824) leva alguns “a considerar subversivos certos aspectos e conteúdos da educação cristã” (1017), não admitindo que a Igreja “por força de um autêntico compromisso evangélico, deve fazer ouvir sua vos, denunciando e condenando estas situações, sobretudo quando os governos ou responsáveis se confessam cristãos” (42). Pelo contrário, em vez de escutar a Igreja, alguns governos justificam os métodos contrários à dignidade humana “com uma profissão de fé cristã subjetiva” (49), chegando a considerar a ideologia da segurança nacional “como doutrina da civilização ocidental cristã” (DP 547).

Qual é o fundamento teológico último que pode levar os bispos a afirmar em Puebla o escândalo e a contradição entre injustiça e fé?

Tal afirmação poderia ser considerada como a asserção teológica mais importante do século. No meu entender, toca o eixo de toda a questão social (problema da justiça) como missão da Igreja (dimensão da fé).

O cristianismo se considera uma religião revelada. Supera, portanto, o mero esforço humano que procura o Absoluto como sentido de sua vida e que pode se expressar em tantas religiões do mundo. O cristianismo é um encontro com o Deus que vem a nós, como iniciativa d’Ele, querendo comunicar-se conosco. Sua palavra reveladora foi ressoando através dos séculos, convocando um povo para ser depositário dela, preparando o momento auge da Revelação que acontece em Jesus Cristo. “Muitas vezes e de modos diversos, falou Deus outrora a nossos pais pelos profetas. Nos últimos dias nos falou pelo Filho, que constituiu herdeiro de tudo, por quem criou também o mundo” (Hb 1, 1-2).

A revelação, portanto, comunica algo além daquilo a que a razão humana tem acesso. Jesus não entrega a sua vida apenas para nos dizer que Deus existe, mas para revelas o mistério do seu ser “por dentro” na comunhão trinitária. O monoteísmo, zelosamente protegido por Israel, deveria abrir-ser – sem perder a firmeza de sua convicção – ao mistério do tripersonalismo na unidade da natureza. Deste moído a humanidade, criada pelo amor que nasce do Pai, redimida do pecado da rebeldia pelo amor redentor do Filho fiel até à morte de cruz e conduzida pela misteriosa e íntima ação do Espírito, é chamada a participar do gozo eterno das revelações trinitárias. No centro da fé se encontra, portanto, a convicção de que ser de Deus é um mistério de comunhão de pessoas e que todo amor entre os homens nos torna participantes do Deus que “que é amor” (1Jo 4,8). O Reino anunciado por Jesus se realiza na fraternidade que se alimenta e vive do mor do Pai.

A revelação cristã contém também uma visão do homem que, se é chamado à vista de Deus, é porque é imagem d’Ele. O Antigo Testamento, zeloso do culto a Deus, rejeitou vigorosamente qualquer representação material do Deus que Espírito e proclamou que o homem, e só ele, é imagem de Deus. Se o Novo Testamento supera a revelação do Antigo é porque nos diz que em Cristo somos imagens porque Ele é a Palavra e o reflexo perfeito do Pai.

É tarefa do homem realizar a imagem potencial que tem dentro de si de um Deus, Senhor de todas as coisas e Mistério de comunhão trinitária. O trabalho como domínio e a solidariedade como comunhão e participação manifesta no concreto do devir histórico a imagem de Deus do homem.

A contradição e o escândalo surgem, então, quando numa sociedade que professa crer, por sai fé, que Deus é comunhão de pessoas divinas e que aspira erigir-se no homem, imagem de Deus, como ser solidário, como uma sociedade de comunhão de pessoas, ocorre a injustiça precisamente como ruptura da comunhão das pessoas humanas.

Se a noção de “imagem” é ponte correta para entender o homem à semelhança de Deus, então não há nada tão contraditório como crer na comunhão pela fé e destruir a comunhão através da injustiça. A negação é total. A injustiça dos cristãos é o ateísmo prático mais grave da história.

Todo pecado é negação do amor e é perdoado por um amor que em Deus precede qualquer ato nosso porque Cristo “morreu por nós quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). Não estamos afirmando, portanto, que só uma sociedade impecável, e por isso não humana, pode ser imagem de Deus. Com fraquezas e debilidades, somos portadores da nobre missão de sermos imagens de Deus no mundo.

O escândalo não nasce de nosso pecado, mas de nossa recusa em reconhecê-lo como pecado, em confessá-lo, em dar-lhe a importância que tem. O escândalo existe, não porque a injustiça seja um episódio marginal repudiado e prontamente corrigido, mas porque ela torna-se “institucionalizada”, impregnando as próprias leis e normas de convivência com o efeito do pecado. Mais ainda, torna-se injustiça institucionalizada em nome de Deus, como defesa dos seus valores.

Quando a injustiça chega a este ponto, perverte-se o próprio sentido de Deus, porque nos faz crer que Deus não é Pai de todos mas um Senhor que faz acepção de pessoas, que cria uma para a salvação e outros para a condenação, à margem de sua liberdade, que a perfeição do homem consiste em sua mera individualidade, porque Deus é assim e não um “ser se relações”.

A injustiça quebra em nós a imagem autêntica de Deus como Senhor em Comunhão. Por isso as duas grandes revoluções modernas, a industrial e a social, são essencialmente incompletas e levam a tantas deformações de Deus e do homem.

Pela técnica e pelo trabalho se manifesta a vocação do homem ao domínio da criação à imagem de Deus. Mas, quando o domínio é vivido sem solidariedade, perde sua dimensão religiosa e inclusive sua própria dimensão humana. A técnica se torna desumanizante, “alienante”, separada do homem, oposta a ele, dominando sobre ele. O processo lógico do domínio sem a solidariedade é a coisificação do domínio, é pô-lo nas coisas e não no sujeito que as tem, é acumular o ter e esquecer o ser. Quer dizer, é puro materialismo.

Mas tampouco basta descobrir o valor da solidariedade e vivê-la a partir de e para os pobres. Novamente, se a solidariedade é “coisificada” em seus instrumentos, se é vivida como controle do poder e não como qualidade dos sujeitos, torna-se a repetir o processo de alienação e de idolatria. O poder é separado da pessoa, oposto a ela, dominando sobre ala. Torna-se “alienante”. O processo lógico da solidariedade coisificada no Estado ou partido, e não entendida como dimensão da pessoa, também é puro materialismo.

A América Latina, enquanto povo de crentes e de oprimidos pelas duas revoluções, é chamada a superar esses caminhos sem saída. A solidariedade dos pobres é sobretudo uma solidariedade de pessoas, como qualidade delas mesmas, sem se coisificar em suas mediações. Os pobres aprenderam que, “unidos”, “podem”. Reinventam a técnica e os recursos, à sua medida e com suas possibilidades, mas sem separar o domínio da solidariedade. É este o grande valor humanizador e cristão dos pobres.

A originalidade desta contribuição está precisamente na dos pobres. No fato deles perceberem que a coexistência da fé e da injustiça “não é cristã”; sabem que Deus quer outra coisa dos homens. Acham que não podem mudar suas vidas porque não têm coisas que os poderosos têm. Mas no dia em que descobrirem que podem mudar suas vidas porque têm o que os poderosos não têm, neste dia, a “boa notícia” foi anunciada aos pobres para sua libertação e continuarão ser caminho de seguimento do Filho de Deus fiel ao Reino do Pai até à morte.

 

  1. O humanismo ateu

 

O desafio mais forte para a Igreja da América Latina vem do marxismo. Muitos bispos e muitos setores da Igreja sentem isso claramente. Alguns consideram esse desafio nos planos econômicos e políticos; temem os avanços dos partidos socialistas de modo que eles possam chegar ao poder e criar condições geopolíticas deferentes.

Mas o marxismo é algo mais do que geopolítica; é pensamento, é filosofia, é ideologia. Também neste plano há sensibilidade da parte da Igreja. As “infiltrações” são vigiadas, citam-se “riscos, desvios, ambigüidades e perigos” dos seus métodos de análise, são percebidos seu efeitos negativos na teologia.

O marxismo, muito além do poder geopolítico ou da sedução de seus métodos sociais junto com a filosofia materialista, é no entanto uma interpelação: o crente é capaz de construir uma sociedade justa? A própria religião, por acaso, não é um fator intensamente alienante que impede, desde a raiz, o compromisso em favor da justiça para com os oprimidos? Não são as próprias instâncias eclesiais que querem defender os privilégios dos poderosos sob o manto da propriedade como direito divino? Não são as autoridade eclesiásticas que condenam a luta dos pobres como expressão do ódio?

As experiências históricas do socialismo são um forte argumento de que o problema da religião não é o obstáculo para a humanização da história. Mesmo removendo este obstáculo, não se chegou a uma sociedade mais humana. Antes pelo contrário, talvez impedindo-a suprimindo-a, eliminou-se uma das mais fortes fontes de mística para alimentar os sacrifícios e as austeridades que toda visão social e solidária traz consigo.

Mas como podemos apresentar a contraprova de que pelo fato de existir a fé e a religião, a sociedade se tornou mais fraterna? Se é verdade que uma fraternidade autêntica é impossível sem um Pai, é certo também que se pode invocar o Pai e não fazer sua vontade.

Como cristãos devemos levar muito a sério a acusação da alienação religiosa e compreender a partir daí a única resposta ao humanismo ate: a fé que opera a justiça.

 

Alienação religiosa e cruz como caminho de libertação

 

O conceito de alienação é fundamental na “crítica às religião”. Em suas linhas essências significa que o ser humano, projetando suas esperanças e tomando-as como realidades existentes fora de si e acima de si, identificadas com Deus, esquece que essas esperanças são algo seu, a ser tornado real com seu esforço e sua luta.

A alienação é pois uma fuga da realidade, uma fuga do sofrimento, procurando um refúgio em Deus enquanto ser alheio ao sofrimento e na vida com Deus, ao menos no “além”, como vida sem sofrimento.

Para o marxismo a luta e o sofrimento devem ser enfrentados, assumidos e superados já aqui, na história.

Não é a recusa em admitir que, Jesus, confessado como o Cristo, o Filho de Deus, deve morrer na cruz (cf. Mt 16), i reflexo mais puro do instinto que nos leva a pensar um Deus alheio ao sofrimento? Tal instinto e desejo é coisa dos homens, e não sabedoria de Deus.

Por isso a acusação de que religião é alienante torna-se o espaço de discussão e de diálogo mais apaixonante para mostrar que a cruz de Cristo, escândalo e fraqueza, é o fator mais desalienante da história.

Deus na cruz certamente não nasceu de nenhuma idéia humana; contradiz os conceitos elementares do pensamento humano sobre o ser de Deus. O mistério da encarnação, da redenção, da salvação e da libertação de Cristo é o caminho inverso de toda alienação religiosa, enquanto fuga do compromisso histórico. Quem pensa que Deus se encontra fora ou à margem da história nunca o encontrará na pessoas de Jesus Cristo. História e Deus não estão separados nem se opõem, embora também não se identifiquem substancialmente. Não porque o homem deseje isto ingenuamente, mas porque Deus o quis e pede como ato de fé, e de fé escandalosa, porque é ter que aceitar que Deus quis assumir a condição dos homens até ao sofrimento e à morte.

Não para ser derrotado por eles, mas para vencê-los. E não para vencê-los só na outra vida, mas também nesta. Há vitórias que conseguem “pela palavra do seu testemunho” aqueles que “menosprezam a sua vida até à morte” (como reza a Igreja nas vésperas das quistas-feiras, AP 12,11).

 

Uma resposta contra o humanismo ateu: a fé que constrói a justiça

 

            No fundo do problema de Deus delineado pelo humanismo ateu não está o problema metafísico de sua existência, mas o problema “funcional” do significado de Deus para a humanização da vida. Por isso, os argumentos metafísicos para provar a existência de Deus caem fora do problema porque o ateu diria que “embora” existisse, não faz bem ao homem crer nele. O ateísmo moderno de tipo social (como o marxismo) atinge em primeiro lugar o problema do sentido de Deus para o homem e não e da existência em si do próprio Deus. Como Feuerbach o formulou, distinguindo-o dos ateísmos anteriores, é um ateísmo “humanista”, por amor ao homem.

Se no fundo da questão está a impossibilidade do crente se comprometer na justiça, por ser crente, a resposta está no contrário, em mostrar em dois passos o seguinte:

  1. Quem é crente constrói a justiça. Trata-se de um testemunho prático, existencial, vivido no compromisso concreto e com resultados bem visíveis. Não estamos aqui no nível das boas intenções, dos discursos lógicos e coerentes, das harmonias abstratas entre fé e justiça. Estamos no plano da realização, da construção concreta.
  2. Constrói a justiça porque é coerente. Só o primeiro passo é insuficiente porque o ateu poderia argumentar que “excepcionalmente” se trata de um crente que constrói a justiça “apesar” de ser crente. Mais ainda, encontrará provas esmagadoras para sua tese no próprio testemunho de muitos cristãos que perseguem, dentro da Igreja, quem se comprometeu, a quem acusam de “marxista”, de “temporalista”, de “horizontalista”, de não afirmar os valores “espirituais”, de “reduzir a fé à promoção humana”, etc. Trata-se do momento da grande crise de fé, não em Deus nem em Cristo, mas numa comunidade cristã que, tendo uma doutrina tão formosa, não a respalda com o compromisso prático e concreto. Para muitos crentes trata-se do encontro verdadeiro com o mistério pascal, com um autêntico morrer e ser purificado, para sair com vida nova e com fé mais humilde e sincera, mas igualmente firme em seu compromisso pela justiça. Quando a crise passou, quando o amor à Igreja se manteve, apesar da incompreensão e da perseguição de dentro, então sim é verdade que EXISTE UMA FÉ QUE CONSTRÓI A JUSTIÇA.