*Manfredo Araújo de Oliveira
Certamente as últimas eleições surpreenderam a muita gente. Talvez tenham sido elas um sinal de que as lutas do povo não desapareceram e que pretendem continuar na agenda política como algo central uma vez que, apesar de uma série de elementos positivos dos últimos anos, as mudanças profundas que deveriam avançar na construção de maior justiça e democracia ainda não se efetivaram. É em torno da idéia de uma sociedade democrática que se devem articular as tentativas de avanço real neste novo mandato.
A democracia enquanto forma de configuração da vida política brota da idéia básica de que todo ser pessoal enquanto ser livre é enquanto tal o sujeito da construção de sua própria vida individual e social. Desta forma, todos são portadores do direito e do dever de assumir a ordenação da vida coletiva enquanto busca de efetivação dos direitos de todos. A conseqüência disto é que uma sociedade só pode ser verdadeiramente dita democrática quando for igualitária, capaz de reconhecer a alteridade em todos os níveis e participativa. Isto se traduz juridicamente com a afirmação de que ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores.
Neste sentido, a democracia pressupõe o Estado de Direito como poder responsável pela promoção e efetivação de direitos, mas deve ir mais longe porque ela se funda no direito de todos os cidadãos à participação livre nas deliberações e decisões no que diz respeito à coisa pública. Por isto se pode dizer que a democracia é a institucionalização de movimentos de libertação social, cultural ou nacional e que ela implica necessariamente o reconhecimento do outro enquanto outro e de nossa responsabilidade para com ele.
Esta participação dos cidadãos se realiza através de sua presença no espaço público pela autodeterminação de sua liberdade o que pressupõe justamente discussão, enquanto troca livre e igualitária de argumentos, e escolha, ou seja, uma reflexividade e uma criatividade coletivas. Por esta razão a democracia implica a liberdade de associação e expressão que torna possível às demandas sociais chegarem à vida pública enquanto espaço social de deliberação e decisão. É por esta razão que na democracia a opinião pública ocupa um lugar central e é precisamente neste sentido que se pode dizer que nela deve haver primazia da sociedade civil sobre o Estado. Assim, a democracia dificilmente pode efetivar-se quando as pessoas não têm vontade de exercer alguma forma o poder e de se fazer ouvir e ser parte integrante das decisões que dizem respeito às suas vidas. Desta forma, as diferentes maneiras de associação e organização vigentes na sociedade expressam a conquista de participação e da superação da falta de poder do indivíduo isolado frente à sociedade como um todo e frente ao Estado.
A democracia não pressupõe consenso já estabelecido, mas antes se caracteriza pelo processo de enfrentamento argumentativo de conflitos. Assim, uma das primeiras tarefas de uma democracia deve ser a busca de instituições que garantam que as deliberações sobre a configuração da vida coletiva possam efetivar-se de forma adequada aos diferentes contextos históricos. É esta a razão que faz da reforma política em debate uma questão urgente e fundamental uma vez que nossas instituições políticas ainda têm as marcas da ditadura e da reforma neoliberal do Estado.
* Filósofo, professor da Universidade Federal do Ceará/ UFC.