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Doutrina Social da Igreja: História e Desafios

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

HISTÓRIA E DESAFIOS

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Introdução

A expressão Doutrina Social da Igreja (DSI) designa o conjunto de escritos e mensagens – cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos, declarações – que compõem o pensamento do magistério católico a respeito da chamada “questão social”. Mas não basta conhecer os documentos reunidos sob essa denominação. O estudo da DSI coloca-nos diante de uma tarefa bem mais exigente em suas implicações e desafios. Trata-se, no fundo, de recriar para os dias atuais, a dimensão sócio-política da Boa Nova de Jesus Cristo.

Um rápido olhar sobre dois textos bíblicos pode nos dar uma idéia do que significa retomar o estudo da DSI. O primeiro é do evangelista Lucas: Jesus encontra-se recolhido num lugar à parte e, sob a insistência dos discípulos, ensina o Pai-nosso (Lc 11,1-4). No segundo texto, o evangelista Mateus faz um breve resumo das atividades de Jesus (Mt 9,35-38). No primeiro caso, Jesus está na montanha em oração; no segundo, Jesus “percorre as cidades e aldeias”, compadecendo-se das multidões “cansadas e abatidas”. Ou seja, na prática de Jesus montanha e rua não se excluem, mas se complementam, se interpelam e se enriquecem mutuamente. Quanto mais Jesus aprofunda sua intimidade com o Pai, na montanha, mais se desdobra no compromisso com os pobres, pelas ruas. A montanha exige a rua e a rua exige a montanha. Oração e ação social constituem duas dimensões indissociáveis de uma mesma prática.

Tudo isso ficará ainda mais evidente em episódios como o Bom Samaritano (Lc 10,25-37), a narração do Juízo Final (Mt 25,31-46) ou os retratos das primeiras comunidades cristãs (At 2,42-47; 4,32-37). Se, por um lado, a mensagem do Evangelho tem como centralidade inquestionável a preocupação com o Reino de Deus, por outro, no coração do Reino encontram-se os pobres com prediletos de Deus.

 

O que é Doutrina Social da Igreja?

Para uma definição mais precisa da DSI, comecemos por resgatar dois textos que se tornarão referências básicas para a tarefa de estabelecer os contornos da doutrina social do magistério católico. Ambos os textos serão como que um mapa, por onde iniciaremos nossa reflexão. O primeiro texto refere-se a um documento publicado em dezembro de 1998 pela Congregação para a Educação Católica, com o título Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação dos sacerdotes.

Ao discorrer sobre os elementos constitutivos da DSI, o documento assim a define: “O ensinamento origina-se do encontro da mensagem evangélica, e de suas exigências éticas, com os problemas que surgem na vida da sociedade. As questões que daí emergem passam a ser matéria para a reflexão moral que amadurece na Igreja por meio da pesquisa científica, e inclusive mediante a experiência da comunidade cristã”. “Esta doutrina – continua o texto – projeta-se sobre os aspectos éticos da vida, sem descuidar dos aspectos técnicos do problema, para julgá-los com critério moral. Baseando-se em ‘princípios sempre válidos’, leva consigo ‘julgamentos contingentes, já que se desenvolve em função das circunstâncias dinâmicas da história e se orienta essencialmente para a “ação ou práxis cristã”.

Um olhar atento a essa definição da DSI permitirá desdobrar seus elementos constitutivos, como faz Ildefonso Camacho[1]. Quatro componentes se destacam: a) exigências éticas derivadas da dimensão social do Evangelho; b) imperativos da realidade sócio-econômica e político-cultural do mundo em que vivemos; c) reflexão moral que confronta a mensagem evangélica com a situação histórica; e d) ação ou práxis sócio-transformadora. Evidente que estes quatro elementos agem em constante interação e procuram adaptar-se aos mais diferentes contextos históricos, como veremos.

O segundo documento em que vamos no apoiar para identificar o que vem a ser a DSI nos remete ao enfoque da doutrina social a partir do Vaticano II. Paradoxalmente, o texto onde vamos encontrar tal enfoque de forma mais elaborada e contundente não pertence aos documentos do concílio. Trata-se do documento sobre A Justiça no Mundo, resultado do Sínodo de 1971. Vale a pena determo-nos um pouco mais nesta síntese sinodal, reproduzindo aqui trechos de sua longa introdução:

“Ao prescrutarmos os ‘sinais dos tempos’ e ao procurarmos descobrir o sentido do curso da história, e compartilhando ao mesmo tempo as aspirações e as interrogações de todos os homens desejosos de construírem um mundo mais humano, queremos escutar a Palavra de Deus, para nos convertermos para a atuação do plano divino acerca da salvação no mundo (JM, nº 2).

“Ao ouvirmos o clamor daqueles que sofrem violência e se vêem oprimidos pelos sistemas e mecanismos injustos, bem como a interpelação de um mundo que, com a sua perversidade, contradiz os desígnios do Criador, chegamos à unanimidade de consciência sobre a vocação da Igreja para estar presente no coração do mundo e pregar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos oprimidos e a alegria aos aflitos. A esperança e o impulso que animam profundamente o mundo não são alheios ao dinamismo do Evangelho que, pela virtude do Espírito Santo, liberta os homens do pecado pessoal e das conseqüências do mesmo na vida social” (JM, nº 5).

“A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do gênero humano de todas as situações opressivas (JM, nº 6)[2].

O último parágrafo citado, no dizer de Camacho, “constitui uma espécie de coluna vertebral de todo o documento”[3]. De fato, por dimensão constitutiva entende-se que a ação sócio-transformadora é parte inerente do Evangelho. Não se trata, portanto, de mero desdobramento da fé cristã e menos ainda de simples apêndice de uma vida segundo o Evangelho. Nada disso! A ação social é elemento integrante da mensagem evangélica, Numa palavra, não haverá verdadeira evangelização sem um correspondente compromisso de ordem social e política.

Na história do magistério da Igreja é certamente uma das expressões que melhor estabelecem o vínculo indissolúvel entre a justiça social e a evangelização. Não há como escapar: o seguimento de Jesus Cristo, para ser genuíno e autêntico, exige participação ativa no trabalho de transformação da sociedade. Esta ação, convém insistir, não é uma excrescência da doutrina – como lembra Henri Bazire – mas parte essencial dos dogmas da tradição católica.

Convém voltar ainda ao mesmo documento para dar-nos conta da força e da novidade desta perspectiva na história da Igreja. Diz o texto que “a situação atual do mundo, vista à luz da fé, faz-nos um apelo no sentido de um retorno ao núcleo mesmo da mensagem cristã, que cria em nós a consciência profunda do seu verdadeiro sentido e das suas urgentes exigências” (JM, nº 35). Ou seja, retornar ao núcleo da mensagem cristã é, antes de mais nada, resgatar sua dimensão social. Sem esta o próprio Evangelho perde seu fermento mais fecundo, mais vital e mais eficaz.

De resto, o Vaticano II, como fonte de elementos da DSI, transpira em todos os seus documentos essa nova sensibilidade diante das reais condições do gênero humano. É fácil perceber isso na frase de abertura da Gaudium et Spes, a qual reflete e sintetiza o espírito de todo o concílio: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”[4].

Em síntese, a DSI procura atualizar a dimensão social do Evangelho para os distintos contextos da vida cotidiana, levando sempre em conta que “o gênero humano encontra-se em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro”[5]. Em poucas palavras, é o Evangelho tornado vivo e atual nos diferentes desafios da realidade social, política, econômica e cultural. Inspirado pelo Espírito Santo, o magistério da Igreja procura interpretar a mensagem evangélica diante das situações mais diversas. Assim nasce uma palavra, uma reflexão, um ensinamento, uma doutrina de caráter social – isto é, escrita para iluminar os problemas relacionados à condição social do gênero humano e conduzir as pessoas à busca de soluções. Resumindo, é a atualização da Palavra de Deus para os dias de hoje, traduzida na sensibilidade e na solicitude da Igreja para com aquelas situações onde a vida encontra-se mais ameaçada.

 

Quando e em que contexto nasceu a DSI?

O documento inaugural daquilo que se convencinou denominar Doutrina Social da Igreja é a encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, publicada a 15 de maio de 1891. De fato, é a primeira vez que um documento do magistério católico dedica-se integralmente à chamada “questão social”. No decorrer do texto, o papa propõe-se abordar a “condição dos operários”.

Isto não quer dizer que os problemas sociais estivessem ausentes das publicações anteriores na história da Igreja. São inúmeras as referências à situação real e concreta dos pobres desde os primeiros séculos do cristianismo e da tradição católica, conforme iremos constatar mais à frente. O próprio Leão XIII, na introdução da Rerum Novarum,  refere-se à abordagem do tema em encíclicas precedentes sobre soberania política, liberdade humana e constituição cristã dos Estados, publicadas respectivamente nos anos de 1831, 1885 e 1888. Mas, enquanto anteriormente essas questões apareciam de forma secundária, à margem de outros assuntos de maior relevância, agora o papa faz da condição social dos operários o tema central de sua carta.

De cara, nota-se aqui uma mudança de enfoque ou de perspectiva: a Igreja, na pessoa do papa, deixa em segundo plano os assuntos internos e volta-se para os problemas que afligem os trabalhadores da época. O olhar da Igreja dirige-se ao mundo exterior, identificando nele os principais desafios sociais à fé cristã e buscando alternativas às contradições da sociedade em que vive.

O contexto da Rerum Novarum é uma sociedade profundamente transformada pela Revolução Industrial. Uma sociedade formada de pessoas que vivem na alma e no corpo os efeitos de um salto gigantesco em termos científico-tecnológicos. A revolução industrial trouxe avanços inegáveis, especialmente através da imensa capacidade de produção através da máquina. Na verdade, representou uma revolução em quatro dimensões: uma de ordem sócio-econômica, com surgimento e consolidação da indústria; outra de ordem política, através do fortalecimento dos Estados-nação a partir da Revolução Francesa; outra, ainda, de ordem científica, que se afirma pelo aprofundamento e sistematização do conhecimento e do método experimental; outra, enfim, de ordem filosófica, fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade.

Mas esse conjunto de transformações trouxe também efeitos negativos. Se é verdade que o poder das máquinas multiplicou em muito a capacidade de produzir bens, alimentos e equipamentos, também é verdade que os benefícios de semelhante progresso não foram eqüitativamente distribuídos. Os “tempos modernos” ou a “era da máquina” vieram acompanhados, simultaneamente, de um enorme potencial produtivo e de uma crescente desigualdade social.

A indústria nasce sob o domínio do sistema capitalista de produção e sob a orientação da filosofia liberal. O lucro é o motor da economia. No mesmo campo, como forças desiguais, patrões e operários lutam por seus interesses. Uns detêm o capital e os meios de produção, outros apenas a força de trabalho. Em tais condições assimétricas, instala-se a lei do mais forte. Na verdade, o liberalismo econômico é um jogo de cartas marcadas, onde os mais fortes vão devorando os mais fracos, numa espécie de darwinismo social.

Em tais condições, a realidade apresenta-se sob um duplo aspecto: por um lado, as fábricas crescem, multiplicam-se por toda parte; a revolução, que tem seu epicentro na Inglaterra, chega rapidamente ao continente europeu e não demorará em cruzar o atlântico com suas chaminés e parques gigantescos. Por outro lado, os trabalhadores, primeiramente expropriados de suas terras, vêem-se depois submetidos a condições de trabalho e de vida extremamente precárias e desumanas. A riqueza de poucos é a contraface da pobreza de muitos.

 

Caráter aberto e dinâmico da DSI

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a DSI não é um conjunto de “verdades” definitivamente acabadas, a serem transmitidas à posteridade. Mais do que um museu a ser visitado em suas antigüidades raras , trata-se de um tesouro a ser permanentemente enriquecido. Seu conteúdo e seus métodos evoluem com os tempos. Aliás, como vimos, a DSI nasceu num tempo em que as transformações sociais têm uma velocidade espantosa. A Igreja procura adaptar-se à evolução da história.

A polêmica entre doutrina ou ensinamento tem aqui sua razão de ser. A palavra doutrina denota uma série de princípios fechados, definidos, dogmas imutáveis. Já o termo ensino ou ensinamento mantém seu caráter aberto, dinâmico e flexível, disposto sempre a incorporar ou rever os valores de acordo com o passar do tempo. Ou seja, estamos diante de um processo em permanente crescimento. Mais do que um fóssil cristalizado no tempo e no espaço, a DSI constitui um organismo vivo que é capaz de adaptar-se às circunstâncias da história e de remodelar-se aos acontecimentos mais imprevisíveis. Sim, um organismo vivo que respira a atmosfera de um determinado contexto social. Nele nasce, cresce e se desenvolve. Embora localizado no tempo e no espaço, vai forjando princípios de validade universal, numa permanente releitura da mensagem evangélica.

Foi Paulo VI, na Octogesima Adveniens (1971) quem melhor apresentou esta mudança de enfoque, isto é, a passagem do conceito de doutrina para o de ensinamento. Assim se expressa o Papa:

“Com todo seu dinamismo, o ensinamento social da Igreja acompanha os homens nesta busca. Embora não intervenha para confirmar, com sua autoridade, uma determinada estrutura estabelecida ou pré-fabricada, não se limita a recordar princípios gerais. Desenvolve-se por meio da reflexão, amadurecida no contato com situações dinâmicas deste mundo, sob o incentivo do Evangelho, como fonte de renovação, desde o momento em que sua mensagem é aceita na plenitude de suas exigências. Desenvolve-se com a sensibilidade própria da Igreja, marcada pela vontade desinteressada de serviço e atenção aos mais pobres; finalmente alimenta-se de uma rica experiência multissecular, que lhe permite assumir, na continuidade de suas preocupações permanentes, as inovações atrevidas e criativas que a situação presente do mundo exige”[6].

A noção de ensinamento busca fundir duas dimensões da solicitude da Igreja no campo social. Por um lado, está atenta à tradição, aos princípios gerais consolidados pela sabedoria e pela experiência de séculos; por outro lado, permanece aberta aos valores novos que os desafios históricos vão engendrando. É nessa dialética entre um corpo de doutrinas sólidas e um constante aprendizado diante dos fatos que o magistério procura navegar. Trata-se, como se vê, de uma perspectiva ao mesmo tempo doutrinal e pastoral, preocupada, simultaneamente, com o rigor dos fundamentos bíblico-teológicos e com as exigências éticas da ação social. Assim sendo, daqui para a frente utilizaremos alternadamente e com significados idênticos os termos doutrina ou ensinamento social da Igreja, ficando por conta do leitor optar por um ou por outro.

De acordo com Camacho, ao comentar a Octogesima Adveniens, o ensinamento social estrutura-se na convergência de três elementos: o contato com as situações dinâmicas, o incentivo do evangelho e a experiência multissecular da Igreja. É assim que ele conclui apontando o “modo como Paulo VI concebe o ensinamento social da Igreja: não prioritariamente como uma doutrina, mas como um complexo processo de análise, julgamento e discernimento para a ação; um processo no qual participa toda a comunidade cristã, e em que a hierarquia atua como animadora e como encarregada da dimensão doutrinal”[7].

Convém assinalar, de passagem, uma outra novidade que aparece de forma sutil mas inegável na Octogesima Adveniens. Estamos falando não apenas da mudança de enfoque em relação à DSI, mas também de um novo protagonismo da doutrina. Esta não será mais prerrogativa da hierarquia, mas tarefa das próprias comunidades locais. “A essas comunidades cristãs compete discernir, com a ajuda do Espírito Santo, com comunhão com os bispos responsáveis, em diálogo com os demais irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém assumir para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se consideram de urgente necessidade em cada caso”[8].

No espírito do documento, verifica-se uma dupla mudança de foco: em termos de responsabilidade pelo aprofundamento e depósito da DSI, o acento desloca-se da hierarquia para a comunidade eclesial; em termos de enfoque, o centro da atenção passa claramente de uma preocupação estritamente doutrinal para o discernimento e a ação. Esse duplo deslocamento envolve tanto a hierarquia quanto a comunidade num alerta permanente aos acontecimentos diários. O rigor da doutrina está subordinado aos desafios que o mundo contemporâneo não se cansa de apresentar. Retoma-se aqui em toda a profundidade o espírito que animou as reflexões do concílio Vaticano II.

E é ainda Camacho quem nos apresenta dois conceitos que dão conta de explicar essa natureza dinâmica e flexível da DSI. O primeiro é a contínua remodelação da doutrina. Ou seja, situações históricas novas exigem uma releitura dos fundamentos doutrinários; e estes, por sua vez, trazem nova luz aos desafios que a realidade levanta dia a dia. Entra aqui o segundo conceito, o de círculo hermeneutíco: o contato vivo com a realidade leva-nos a descobrir, a cada curva do caminho, um sentido mais profundo da Palavra de Deus. Por outro lado, esta redescoberta constante de novos enfoques da mensagem evangélica joga luz nova sobre as realidades concretas e orienta os passos dos caminhantes. Numa palavra, o evangelho ilumina a vida e a vida ilumina o evangelho. Na expressão de Camacho, o processo “vai da fé à práxis histórica, e da práxis histórica à fé”.

 

Evolução da DSI ao longo da História

De Leão XIII a João Paulo II, da Rerum Novarum à Centessimus Annus, decorreu um século de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Passados hoje mais de cem anos desse pensamento social, é possível identificar uma certa periodização, a qual aponta para uma inegável evolução no tempo. Embora cientes de que todo corte histórico é arbitrário, não será difícil perceber determinadas etapas no percurso da DSI. Seguindo aproximadamente o esquema de Camacho, podemos falar em cinco períodos em que a doutrina social e a história do ocidente apresentam inquestionável correspondência.

  1. O primeiro período é o próprio contexto do surgimento da DSI, no final do século XIX e início do século XX. Como já ficou claro, a Igreja está diante de duas ameaças: o liberalismo e o comunismo. De um lado, os males provocados por uma economia centralizada na maximização do lucro e na acumulação capitalista. Destacam-se nesse quadro, entre outras coisas, a exploração do trabalho, as precárias condições de habitação e salubridade, o uso indiscriminado da mão de obra infantil e feminina, os baixos salários, as longas e penosas jornadas de trabalho e os deslocamentos humanos de massa. Em resumo, é o cenário já descrito referente às conseqüências da Revolução Industrial. A produção e a produtividade dão um salto nunca visto na história, mas a grande maioria da população fica à margem desse progresso. É o que leva a solicitude pastoral de um Leão XIII a preocupar-se com a “condição dos operários”.

Por outro lado, a chamada “onda vermelha” do socialismo ganha terreno a olhos vistos. Desde o Manifesto Comunista, em 1848, consolida-se a organização internacional que se desdobra em uma imensa rede de núcleos espalhados por todo continente europeu. Podemos mesmo afirmar que a Rerum Novarum nasce sob essa dupla motivação: uma mais explícita, voltada para a “questão social”, e uma mais encoberta, marcada pelo temor do avanço socialista.

Trava-se na Europa de então uma batalha surda entre liberalismo econômico e teoria marxista. Iremos ver como Leão XIII se vê como que premido entre essas duas forças ideológicas, as quais, vale dizer, expressam interesses distintos e contraditórios. Se, por uma parte, procura impedir que os pobres e indefesos, especialmente os operários, sejam devorados pela ganância selvagem do capitalismo nascente, por outra, procura defendê-los do que ele chama o “principal inimigo da doutrina da Igreja”.

O contexto ideológico encontra-se carregado. Aliás, esse confronto entre economia de mercado e planejamento centralizado, como veremos, deverá ser um tema recorrente nos documentos da DSI. Talvez não seja difícil, na época, vislumbrar no horizonte ainda distante os rumores da Primeira Guerra Mundial.

  1. Dois fantasmas rondam o período seguinte, já nas primeiras décadas do século XX: o facismo/nazismo e o comunismo. Os escombros da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética e a crise de 1929 espalham instabilidade e insegurança por todo mundo. Como solução desesperada, nascem os movimentos integralistas e os regimes totalitários, com Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Stalin na União Soviética, Franco na Espanha e Salazar em Portugal. A Quadragesimo Anno (1931), encíclica de Pio XI em comemoração ao 40º aniversário da Rerum Novarum, e as mensagens radiofônicas de Pio XII, alertam para os perigos do poder absoluto do Estado, ao mesmo tempo que se levantam em defesa dos direitos do cidadão. A Segunda Guerra Mundial, com um saldo de milhões de mortos e de mutilados, constitui o desfecho trágico dessa experiência de totalitarismos.

Aliás, de acordo com alguns autores, ao invés de falar em duas guerras mundiais, seria mais acertado  falar de um conflito único, com duas grandes conflagrações generalizadas, intermediadas por vinte anos de relativa trégua, em que a crise e o medo tomam conta de tudo. O resultado final após explosão das duas bombas atômicas, em meados dos anos 40, é um mundo devastado por extrema violência e pelos genocídios, repleto de cinzas, escombros e pânico. Feridas profundas, jamais cicatrizadas, exibem o poder de destruição a que chegou a humanidade.

  1. Apesar dessa experiência traumática, os anos que vão do pós-guerra ao Vaticano II constituem um período de euforia, se avaliados do ponto de vista dos índices econômicos. Impõe-se um duplo desafio: para os países centrais, após o vendavam devastador dos conflitos armados, trata-se de consolidar a democracia e os direitos humanos; já nos países periféricos, o dilema é como estender os benefícios do progresso às regiões mais pobres do planeta. Em ambos os casos, como equilibrar crescimento econômico e desenvolvimento social? É neste cenário que vemos surgir a figura paterna e materna de João XXIII.

Emerge com ele uma nova preocupação de pastor com a renovação da Igreja, voltada para horizontes igualmente novos, com vistas à manutenção de uma paz duradoura. Terreno fértil para duas encíclicas: primeiro, a Mater et Magistra (1961), com acento na doutrina social, revela a sensibilidade viva para com os novos problemas da sociedade moderna; segundo, a Pacem in Terris (1963), enfocando a doutrina política, aponta a necessidade de um compromisso conjunto para a construção da paz mundial.

Reafirma-se, em termos gerais, o paradigma da modernidade. O credo moderno – feito de quatro palavras chaves: razão, ciência, tecnologia e progresso – adquire novo impulso. João XXIII, com seu otimismo nato, é uma figura emblemática da época. Acredita-se na evolução do gênero humano para um patamar mais elevado, crença esta que voltará a ser fortemente questionada a partir dos anos 70.

Como pano de fundo desse oxigênio de euforia, percorrem os céus nuvens sombrias da guerra fria entre os dois blocos mais poderosos do planeta – Estados Unidos e União Soviética. Do ponto de vista geopolítico, estamos diante de um mundo bipolarizado, em que demais nações figuram como alinhadas a um dos lados. A corrida armamentista constitui um equilíbrio sempre precário entre as forças militares. A humanidade convive com perigo constante de uma guerra total de conseqüências imprevisíveis em termos de destruição e morte. Teme-se pelo fim da vida em todas as suas formas.

  1. Logo em seguida, o mesmo João XXIII, com uma sensibilidade surpreendente, desencadeará uma reviravolta na Igreja, ao abrir suas portas ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se de sintonizar a mensagem e a solicitude do magistério eclesial com os dilemas do mundo moderno. Dois sentimentos aparentemente contraditórios revestem o período em que ocorre o concílio. Ao lado da permanente ameaça de guerra total, o clima ainda é de otimismo quanto à reconstrução do diálogo e da paz. Não é à toa que o ecumenismo será, entre outras, uma das marcas do evento conciliar.

Entre os documentos do concílio, do ponto de vista social, ganha relevância a Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje. Abrem-se novos caminhos e novos enfoques para o ensino social da Igreja. Esta, embora com algum atraso, resolve acertar os passos com o ritmo desenfreado do mundo contemporâneo. A chamada modernidade deixa de ser uma espécie de bicho papão para converter-se em campo de diálogo. Reconhece-se os avanços e benefícios dos “tempos modernos”, ao mesmo tempo que se apontam seus estrangulamentos e incongruências.

Caberá a Paulo VI, imediatamente após o Vaticano II, colocar em cena a contradição mais flagrante da vida moderna: a extrema discrepância entre, de um lado, o progresso humano, fruto da revolução científico-tecnológica e, de outro, a profunda desigualdade que divide as nações, os povos e as pessoas. Esse será o tema recorrente de seus escritos, tais como a encíclica Populorum Progressio (1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (1971) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi (1975).

  1. O período que vai do início dos anos 70 aos dias de hoje, será marcado pela crise estrutural do neoliberalismo e pelos desafios de uma economia cada vez mais globalizada. Aprofunda-se o questionamento sobre os “valores da modernidade”. Na verdade, durante todo o decorrer do século XX, esses valores já vinham sofrendo constantes ataques. Este século de profundos enfrentamentos bélicos, de genocídios e etnocídios, de colonialismos e de matanças indiscriminadas irá corroer pelas raízes o chamado credo da modernidade.

João Paulo II, com as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), abordará e denunciará com energia os males deste novo tempo. Iniciada no começo dos anos 70, as crises se agravam cada vez mais. Seguem-se, como se sabe, duas décadas perdidas. O clima de descrença e instabilidade contamina não apenas a economia e o mercado mundial, mas estende-se também ao campo da política e da sociedade em geral. Trata-se, para alguns estudiosos, de uma verdadeira transformação cultural, uma transição paradigmática. Não somente uma época de mudanças, e sim uma mudança de época. A polêmica em torno do pós-modernismo tem suas raízes nesse cenário de crises, dúvidas e interrogações crescentes.

Ressurgem como dilemas antigos e sempre novos os problemas relativos ao endividamento externa e interno, ao desenvolvimento desigual, ao neocolonialismo, à contaminação e depredação da natureza, à nova corrida armamentista e à exclusão social, entre outros. Temas que, aliás, ganharão contornos cada vez mais vigorosos na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (1994), na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (1999) e na carta apostólica Novo Millennio Ineunte (2001).

Na América Latina e Caribe, como se sabe, os documentos conclusivos dos encontros da Conferência Episcopal Latino-americana (Celam) em Medellín, Colômbia, em Puebla, México e em Santo Domingo, República Dominicana, tiveram o mérito de traduzir para este continente as orientações gerais da DSI, em particular do Concílio Vaticano II. Fizeram-no com grande coragem e inegável profetismo, desafiando inclusive os poderes constituídos. Não podemos esquecer que o núcleo central das intervenções dos bispos latino-americanos é, sem dúvida, a opção pelos pobres, com vistas a fortalecer ações pastorais para a erradicação da pobreza e da violência institucionalizada no continente.

 

Princípios Gerais da DSI

A pergunta que está por trás deste item poderia ser formulada da seguinte forma: quais as linhas mestras da DSI e como fazer de cada uma delas um instrumento no combate à pobreza, à miséria e à fome nos dias atuais? Como aplicá-las, hoje, no contexto da economia globalizada, na realidade da América Latina e do Brasil?

  1. A mais incisiva preocupação dos Papas, de Leão XIII a João Paulo II, sempre foi a centralidade e a dignidade da pessoa humana. A promoção integral do homem, a liberdade de expressão e de religião, a defesa incondicional da vida, o combate a todo tipo de preconceito, discriminação e racismo são temas correlatos que enriquecem as páginas dos documentos. O ser humano, como lembra a Gaudium et Spes, é autor, centro e fim do desenvolvimento econômico. Nada o atinge mais profundamente do que o fato de ter se tornado mero instrumento diante dos imperativos da economia de mercado ou do coletivismo. A dignidade da pessoa humana deve ser o objetivo último da produção de bens, da organização política e das expressões culturais.

Nos dias de hoje, a pobreza, a fome e a violência, entre outros males, ameaçam esse princípio desde os seus fundamentos. Daí a necessidade de manter viva a opção preferencial pelos pobres, como sujeitos da própria libertação. Não podemos falar de dignidade humana sem falar de condições reais de vida, o que em termos concretos significa o respeito aos direitos fundamentais, tais como alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação, entre outros.

  1. Uma segunda orientação que acompanha a DSI desde a Rerum Novarum é o primado do trabalho sobre o capital. Questões relativas ao salário justo, à subsistência familiar e à grande chaga que é desemprego são as principais preocupações do magistério nas relações entre patrões e empregados. Hoje, com o fenômeno da economia globalizada e a crescente precarização das relações empregatícias, tende a acirrar-se o conflito capital-trabalho. Palavras como flexibilização das leis trabalhistas ou terceirização representam verdadeiras ameaças. As conseqüências para a imensa maioria dos pobres de todo planeta são as mais desastrosas.

João Paulo II, na Laborem Exercens, com muita propriedade, recoloca o trabalho como chave da vida social. É por ele que o ser humano se realiza plenamente, ao mesmo tempo que colabora com a obra da criação. Nesta perspectiva, o desafio é encontrar formas de reafirmar com novo vigor a primazia do trabalho sobre a acumulação de lucros por parte do capital. Cabe aqui um olhar mais atento para as iniciativa populares de economia solidária, as quais se multiplicam por toda parte, e que precisam do estímulo e do incentivo da Igreja.

Transparece, nas páginas do ensino social, a espiritualidade do trabalho. Por suas próprias mãos, o ser humano é capaz de modificar a matéria bruta em algo novo e útil. O minério de ferro transforma-se em automóvel ou eletrodoméstico, a madeira em mesa ou banco, a lã ou algodão em roupa e abrigo, e assim por diante. Da mesma forma, o trabalhador torna-se capaz de modificar a si mesmo. Poderá fazer de sua vida e de seu espírito uma constante metamorfose. Poderá recriar-se e recriar as relações com outros seres humanos. Se, tijolo a tijolo, aprende a levantar um edifício, também aprenderá a erguer-se, passo a passo, enquanto criatura renovada. Pelo trabalho, transforma as coisas e transforma-se a si mesmo e à convivência com os demais. Participa da nova criação. Torna-se co-autor do novo céu e da nova terra. Artífice da cidade, do progresso e da história, será igualmente sujeito de seu próprio renascer para uma vida nova.

Em síntese, buscando a perfeição de sua obra, o trabalhador pode, ao mesmo tempo, iniciar o processo de aperfeiçoamento de si mesmo e da sociedade. Ou, em termos teológicos, da construção do Reino de Deus. As mãos que aprendem a manipular a matéria estão aptas a transformar o espírito.

  1. A busca do bem comum é outra das grandes metas da DSI. Expressões como função social da propriedade, destino universal dos bens, deveres do Estado para com o bem estar da população, participação de todos na busca do bem comum, entre outros, são chaves para entender o pensamento social da Igreja. O fio condutor é que o bem comum está acima do individualismo, dos interesses de classe e do lucro privado. Como interpretar isso diante dos ganhos exorbitantes das instituições financeiras com suas mega operações, por exemplo? Convivem, lado a lado, a especulação crescente e indiscriminada e a exclusão de setores cada vez mais amplos da sociedade. Como justificar a existência de enormes latifúndios ao redor dos quais perambulam multidões famintas, sem terra, sem trabalho e sem moradia? Em termos concretos, especialmente para o Brasil, como pensar numa reforma agrária e agrícola que fortaleça o pequeno produtor, particularmente a agricultura familiar? Por outro lado, em termos mundiais, como controlar o fluxo e refluxo de capitais, em defesa de políticas públicas que possam beneficiar as populações pobres e excluídas de todos os países?

Desde Leão XIII, insiste a doutrina social: o bem de cada um está subordinado ao bem comum. O Estado é responsável pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais de cada cidadão. Neste sentido, vale uma palavra sobre a família, a qual deve ser protegida pela ação das autoridades.

  1. Em quarto lugar, a expressão desenvolvimento integral chama a atenção para um dos escândalos que mais tem incomodado a DSI, isto é, a profunda discrepância entre crescimento econômico e desenvolvimento social. Numa palavra: por que os benefícios do progresso não são igualmente desfrutados por todos? Como entender que uma era de enormes avanços tecnológicos seja, ao mesmo tempo, uma era de tanta fome e miséria? Como é possível que as máquinas possam, simultaneamente, multiplicar quase sem limite o volume dos bens e o desemprego?

A ciência e a tecnologia, que deveriam estar a serviço do bem comum, são utilizadas em prol do lucro, do acúmulo indevido e do enriquecimento de poucos. Daí o desenvolvimento desigual, seja entre as nações, seja entre as regiões de um mesmo país. Neste perspectiva, os Papas não se cansam de denunciar o colonialismo e neocolonialismo, a dependência crônica e, mais recentemente, as exigências dos organismos financeiros internacionais, como FMI. Na América Latina, em especial, esse tema é bem conhecido. O dilema atual se coloca no sentido de reorientar a política econômica para um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável, subordinado a princípios éticos. Por exemplo, como pensar programas que incentivem uma melhor distribuição de riqueza?

Surgem, mais atuais do que nunca, as palavras de Paulo VI na Populorum Progressio: o desenvolvimento é o novo nome da paz! Como não lembrar também do imperativo do profeta Isaías, citado por João XXIII na Pacem in Terris: a paz é fruto da justiça? Não basta uma paz fundamentada sobre o equilíbrio das armas. Não basta a paz do medo, a paz dos cemitérios. É necessário buscar e construir a paz, alicerçada numa justa distribuição dos bens do progresso. Enquanto a fome e o luxo constituírem dois pólos opostos de uma mesma realidade, duas faces da mesma moeda – a da injustiça social – não haverá verdadeira paz!

  1. Os avanços tecnológicos dos últimos tempos constituem uma das maiores obras do ser humano. A razão aplicada à ciência experimental abrem horizontes nunca imaginados. A ficção científica torna-se realidade. Tudo isso traz um imperativo que os documentos da Igreja não se cansam de repetir: a tecnologia é um instrumento a serviço do homem e do bem comum. Hoje parece predominar o contrário. O ser humano torna-se uma peça nos imensos complexos industriais. Pior que isso, uma peça muitas vezes descartável, como qualquer outra.

Com reverter a situação? A revolução científico-tecnológica que marcou os derradeiros séculos deve ser acompanhada, segundo a doutrina social, de princípios éticos que garantam a dignidade inviolável do ser humano. Este, como já vimos, é o fim de todo e qualquer progresso. A técnica é simplesmente meio e, como tal, deve submeter-se a realização integral da pessoa humana. A Laborem Exercens, sobre o trabalho humano, sublinha bem esse caráter instrumental da técnica.

  1. A crítica a todo tipo de ideologia materialista é outra preocupação que atravessa a DSI desde o final do século XIX. Se é verdade que a Rerum Novarum se opunha como muito mais veemência ao socialismo do que ao capitalismo, no decorrer do século irão crescer as críticas à filosofia da livre concorrência. Coloca-se em evidência, por um lado, os males da economia centralizada, onde o poder do Estado anula as liberdades pessoais. Por outro lado, aponta-se as conseqüências nocivas de uma economia individualista e orientada para o lucro, em que o mercado, cego a todo drama pessoal ou social, impera, domina e explora trabalhadores e consumidores. Tanto a burocracia estatal quanto o liberalismo desenfreado constituem alvo das palavras dos pontífices.

Na Laborem Exercens, João Paulo II vai deixar claro que tanto o “capitalismo rígido” quanto o coletivismo marxista são sistemas em que uma minoria se apropria indevidamente dos frutos do trabalho da maioria. O economicismo e o materialismo, presentes em ambos os sistemas, contradizem o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital. Disso resulta, que o decisivo não é tanto a coletivização da propriedade, e sim a relação que se constrói entre os trabalhadores e os bens produzidos. Como diz o texto: “o direito à propriedade privada como subordinado ao direito ao uso comum.

  1. O papel do Estado é uma das preocupações recorrentes na doutrina social do magistério católico. Questões como a previdência social, a saúde pública, a educação, a abertura de novos postos de trabalho, garantia dos direitos trabalhistas, entre outras, devem estar na ordem do dia das autoridades responsáveis. A idéia do Estado de bem estar ou Estado providência encontra-se presente em muitos textos da DSI. Ao mesmo tempo, os textos não se cansam de chamar a atenção para a demasiada intervenção do Estado, a qual pode ferir a autonomia das instituições da sociedade civil. Trata-se de salvar aqui um outro princípio que tem sido caro à doutrina social: o da subsidariedade. O Estado não deve tomar sobre si as tarefas que podem ser realizadas pelas organizações ou instâncias da sociedade civil, nem, inversamente, jogar sobre estas o peso de certos encargos que são de competência das autoridades maiores.

Além disso, desde a Rerum Novarum, o Estado aparece como aquele que deve intermediar tensões entre capital e trabalho, patrões e empregados. Parte-se do pressuposto de que é possível conciliar as duas classes em jogo. A história irá mostrar como essa tentativa de buscar a concórdia e a harmonia entre as classes se torna ilusória, dado o antagonismo intrínseco de interesses tão contraditórios. A respeito da necessidade de abrir novas frentes de trabalho, João Paulo II distingue entre empresário direto e empresário indireto, definindo este último como “o conjunto de instâncias, em escala nacional e internacional, responsáveis por todo o ordenamento da política trabalhista”[9].

Ainda como tarefa imprescindível e intransferível do Estado está a construção de relações internacionais que possam garantir a paz. Daí a importância de organismos especializados e de uma política ou, na expressão de João Paulo II, uma cultura da paz e da solidariedade. Levanta-se aqui, uma vez mais, a crítica vigorosa à corrida armamentista e à postura belicosa dos governos nacionais, em detrimento de seus povos.

  1. Embora desde a Rerum Novarum já se encontrem várias referências às associações operárias católicas e às corporações, é sobretudo Pio XI, na Quagragesimo Anno, que irá conferir atenção especial ao direito de organização dos trabalhadores. Tal organização, em sua maneira de ver, muito pode contribuir para superar a questão social. Enquanto as palavras de Leão XIII estão marcadas pelo temor da “onda vermelha” e pelo fascínio da organização internacional socialista, a partir de Pio XI nota-se nos documentos maior incentivo e apoio ao associativismo.

Depois do Vaticano II, o tema ganhará cada vez mais espaço, até merecer a dedicação de parágrafos inteiros e exclusivos. Com Paulo VI e João Pulo II, a Igreja não apenas reconhecerá o direito dos trabalhadores à organização, mas fortalecerá os sindicatos e as diversas formas de luta da classe trabalhadora. O direito à greve, por exemplo, combatido pela Rerum Novarum, será progressivamente aceito como um meio legítimo de buscar seus interesses.

  1. Entra aqui o tema da propriedade privada. Também neste caso, verifica-se uma evolução de um princípio rígido de propriedade para uma visão mais atenuada. No decorrer do pensamento social, passa-se de um conceito de direito natural à categoria de função social da propriedade. A ênfase não está no título de propriedade, mas em seu correto uso.. Segundo esta, toda a propriedade, antes de ser um bem pessoal e privado, deve estar subordinada aos interesses maiores da sociedade, ou seja, ao bem comum. No dizer de João Paulo II em sua visita ao México “sobre toda a propriedade pesa uma hipoteca social”.

No caso do Brasil, tomemos como exemplo os enormes latifúndios cercados por multidões famintas. O direito ao “uso” da terra para buscar o pão e matar a fome está acima do direito à sua “propriedade”. A titularidade legal está subordinada às necessidades legítimas da população. Pelo conceito de função social, as urgências básicas e prementes de garantir a vida estão acima da simples manutenção do título. Em termos mais populares, a posse supera a propriedade.            A busca de

  1. Caberá especialmente a João Paulo II erguer-se com energia diante dos graves problemas do atual modelo neoliberal de economia globalizada. Sua voz, tanto mais incisiva quanto mais debilitada com o passar dos anos, não se cansa de denunciar os efeitos perversos, sobretudo para os países periféricos, dos enormes endividamentos externos, da destruição do meio ambiente e do uso indiscriminado dos recursos naturais, da guerra de mercado, da precarização das relações de trabalho, do consumismo exacerbado, do mercado como um novo ídolo, do desemprego crescente e da exclusão social. A vida está em primeiro lugar! – tem sido seu grito nas viagens por todo o planeta.
  2. Por fim, ainda uma última orientação que permeia toda a DSI: a evangelização inculturada. Predomina hoje o pluralismo, seja em termos étnicos seja em termos religiosos. Valores e contravalores se cruzam e se entrelaçam. A evangelização passa necessariamente por esse novo cenário polifônico e multifacetado. Daí a importância do diálogo e da abertura, aliás, uma herança do Concílio Vaticano II. Por um lado, os meios de comunicação hoje facilitam o intercâmbio e o enriquecimento recíproco. Por outro lado, com o fenômeno da economia mundializada, a idolatria do mercado espalha-se com a velocidade de um toque na tecla do computador. Luxo e miséria coexistem lado a lado. A pobreza e a fome tornam-se um fenômeno tanto mais escandaloso quando colocado frente a frente com toneladas de alimento armazenado, e não raro em vias de apodrecer. Coloca-se em pauta, uma vez mais, a urgência de João Paulo II, com esforços incansáveis para divulgar a globalização da solidariedade, em contraposição à globalização neoliberal, concentradora e excludente?

 

Conclusão

O estudo que acabamos de ler, a respeito da Doutrina Social da Igreja (DSI), representa um vôo de pássaro sobre um século de documentos do Magistério Católico. Nesses documentos, como vimos, a “questão social” é a temática de fundo. A DSI, na verdade, reúne os escritos e pronunciamentos em que a Igreja, desde o Papa Leão XIII até os dias atuais, ao mesmo tempo que manifesta sua solicitude pastoral diante da situação econômica, política, social e cultural de toda a humanidade.

A bem dizer, o aprofundamento do tema da doutrina social não tem conclusão. Ou melhor, poderíamos afirmar que a conclusão é o próprio desdobramento do estudo em ações solidárias conseqüentes. Em outras palavras, concluir é concretizar os princípios da DSI no desafio de transformar as pessoas e as estruturas de uma realidade injusta. Três passos são importantes na passagem do estudo à atuação pastoral:

  1. conhecer o contexto em que nasceram os diversos escritos da DSI e as respectivas respostas dadas pela Igreja na ocasião;
  2. fazer um diagnóstico atualizado da realidade e identificar os principais desafios que ela apresenta hoje à Igreja e à sociedade como um todo;
  3. reinterpretar o espírito dos documentos no contexto da atualidade, buscando alternativas viáveis para a construção do Reino de Deus.

A DSI constitui, como sabemos, uma atualização permanente da dimensão sócio-transformadora do Evangelho nas distintas etapas da história humana. Podemos resumi-la numa pergunta: como traduzir a Boa Nova de Jesus Cristo diante de cada momento novo e desafiador? O livreto que ora concluímos tem a finalidade de orientar os agentes de pastoral e lideranças nessa tarefa de reler a mensagem evangélica no tempo presente, especialmente em suas implicações sociais e políticas. O subsídio tem em vista, simultaneamente, o estudo e à prática pastoral.

[1] CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja – Abordagem histórica, Edições Loyola, São Paulo/SP, 1995.

[2] A Justiça no Mundo, Documentos Pontifícios, nº 184, Sínodo dos Bispos de 1971. Editora Vozes, Petrópolis/RJ, 1972 (grifos nossos).

[3] Idem, ibid

[4] Gaudium et Spes, Proêmio, número 1.

[5] idem, número 4.

[6] Octogésima Adveniens, número 42

[7] CAMACHO, op cit.

[8] AO, número 4.

[9] João Paulo II, Laborem Exercens, 18ª