Crise reacende o debate sobre o sistema capitalista
Pedro A. Ribeiro de Oliveira *
O triunfo do capitalismo na guerra fria fez mais do que destruir o socialismo soviético: desde 1990 o ideário neoliberal tornou-se a referência obrigatória para a Economia Política. Quem não se alinhasse àquele pensamento passava por “atrasado”, incapaz de acompanhar o êxito do primeiro mundo cuja tecnologia de ponta seduz os povos. Naquele contexto, a realização do I Fórum Social Mundial, em 2001, parecia não ser mais do que um contraponto de menor importância ao Fórum Econômico que reunia nos Alpes suíços os responsáveis pelo mundo dos negócios em escala global. Estes, sim, davam a impressão de poderem decidir os rumos da Humanidade. Passados apenas oito anos, porém, a realidade é bem outra: enquanto em Belém do Pará membros dos diversos Movimentos Sociais reafirmam que “um outro mundo é possível” e falam dos avanços nessa direção, os global players do capitalismo reunidos em Davos pedem socorro ao Estado para evitar a falência do sistema financeiro mundial.
A instabilidade criada pela irresponsabilidade do sistema financeiro dos EUA se alastrou pelo mundo e já afeta toda a economia mundial. Durante um bom ano ela foi subestimada, como se não passasse de um desequilíbrio restrito a um setor, mas hoje ninguém duvida da sua gravidade. O foco do debate está na sua natureza e nos desdobramentos que ela poderá tomar. Este artigo tem por finalidade alimentar esse debate com a apresentação de algumas idéias levantadas no Fórum Social Mundial. Fique claro que se trata de uma síntese pessoal, desenvolvida a partir do que li e ouvi nas palestras das quais participei.
O foco do debate: a natureza da crise atual
A teoria econômica clássica encara as crises como ocorrências cíclicas e portanto normais no sistema capitalista, cujo crescimento sempre alterna tempos de expansão e de contração da economia. Em favor deste argumento pesa o fato de já se registrarem 46 crises no sistema de mercado desde 1790. Segundo essa teoria, as crises são o principal fator de aperfeiçoamento do mercado, posto que o obrigam a corrigir seus erros e exageros. Para essa corrente de pensamento, que domina o Fórum Econômico de Davos, o mais importante hoje é evitar todo “alarmismo” e recuperar a confiança no setor financeiro. Em termos práticos, isso significa injetar uma enorme quantidade de fundos públicos em socorro de instituições financeiras e empresas (no início de fevereiro essa injeção já alcançou o equivalente a quase dois trilhões de dólares) para tranquilizar o mercado e assim reativar a economia. Seguindo essa receita, em breve passará a turbulência e o capitalismo seguirá sua trajetória triunfal, ainda que ao preço de maior controle externo sobre as empresas financeiras.
Não é assim, contudo, que os intelectuais e representantes de Movimentos Sociais participantes do FSM encaram a crise atual. Todos sabemos que as crises no capitalismo são cíclicas e contribuem para depurá-lo de seus erros, mas isso não significa que esse sistema tenha a garantia da perenidade. Esboçado nas cidades do norte da Itália desde o século 13, estruturou-se no século 16, provocou a revolução industrial no século 18 e consolidou-se por meio das revoluções política e cultural do século 19. No século 20 atingiu a maturidade, ao mundializar-se pelo processo de globalização. Ao longo do tempo, não só assumiu diferentes formas – mercantilista, liberal, imperialista-colonial, de bem-estar social e neoliberal – como transferiu seus pólos (das cidades italianas para Amsterdã, dali para Londres e depois Nova York, de onde pode vir a transferir-se para Pequim). Todas essas mudanças foram acompanhadas de graves crises, em geral resolvidas por meio de guerras. O que se pergunta agora é se ele sobreviverá ao século 21.
Evidentemente, essa pergunta não entra na pauta do pensamento econômico neoliberal, que descarta a priori a possibilidade de o sistema capitalista vir a desaparecer – exceto na ocorrência de uma verdadeira catástrofe humana e natural – mas está cada vez mais presente na agenda intelectual de quem crê num “outro mundo possível”. Apresento aqui, em poucos parágrafos, os argumentos levantados em favor da hipótese de ser esta uma crise sistêmica que, por ser muito mais do que uma crise econômico-financeira, só poderá ser superada por meio de outro modo de produção e de consumo. Concluo o artigo analisando uma das experiências que apontam para a viabilidade histórica dessa superação do sistema capitalista de mercado.
Crise do sistema produtivista / consumista de mercado
Estamos, sem dúvida, imersos numa grave crise financeira. Basta ter presente que enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) mundial alcançou quase US$ 55 trilhões, em 2007, o volume dos direitos negociados no sistema financeiro mundial chegou a quase US$ 600 trilhões. O mesmo indicador do valor (a moeda expressa em US$) aplica-se a duas realidades muito diferentes: o volume de bens e serviços efetivamente produzidos, e a compra e venda de direitos que são repassados sem que nenhum novo bem tenha sido produzido (por isso, chamados de derivativos). Esses dados referentes à forma mais avançada do capitalismo podem ser resumidos no mote “lucrar sem produzir”.
Ainda que esse lucro puramente especulativo viesse a ser coibido, o sistema capitalista continuaria sob ameaça de colapso devido aos efeitos não-econômicos dos processos econômicos regidos pela lógica do lucro capitalista. Efeitos como a produção de lixo, o desperdício de matérias-primas e energia, a destruição da biodiversidade, a degradação dos solos e das águas, doenças (p.ex. o teor de enxofre no diesel da Petrobrás, os transgênicos da Monsanto), a exclusão social e a revolta dos oprimidos, são chamados de externalidades pela teoria econômica liberal. Por não contabilizá-los, o capitalismo consegue produzir enorme quantidade de riqueza e muitos lucros. O problema, agora, é que, a se manter a mesma lógica econômica, as externalidades se voltarão contra o sistema e o travarão. O déficit energético, o aquecimento global e a desumanização das relações sociais estão hoje a apontar que o sistema capitalista de mercado está prestes a esgotar sua capacidade de produzir riqueza.
Vejamos, em poucas linhas, como se apresenta hoje esse quadro de externalidades que ameaçam travar o funcionamento do sistema de mercado.
O produtivismo consumista do capitalismo tem fome de energia. O carvão para a “revolução industrial”, e mais tarde, a hidroeletricidade e o petróleo em abundância, permitiram a farra consumista do século 20. É verdade que essa farra só é real para cerca de um bilhão de pessoas (que consomem 80% das riquezas do mundo), pois outro tanto passa fome e a grande maioria da população da Terra consome apenas o suficiente.
Acontece que essas fontes de energia ou não são renováveis (carvão, petróleo, gás) ou são fisicamente limitadas (hidroeletricidade). O mundo está num impasse: ou desenvolve novas fontes de energia, ou renuncia ao produtivismo consumista. O bilhão de pessoas que forma a “burguesia mundial” coloca suas esperanças nas novas fontes de energia que sejam renováveis (como a agroenergia) e, o quanto possível, “limpas”. A técnica representa para essa classe a grande esperança: ela acredita que um dia cientistas e pesquisadores descobrirão fontes de energia que lhe permita manter o atual padrão de consumo sem risco de esgotamento. Como esse dia ainda não chegou, os ricos continuam consumindo vorazmente os recursos da Terra, enquanto os pobres sonham poder consumir igual…
Enquanto isso, a Terra vê aproximar-se uma nova era geológica marcada pelo aquecimento global. Embora esse processo provavelmente se deva também a vários outros fatores, é certo que o produtivismo consumista é responsável por sua aceleração. As estimativas são incertas, porque o tempo da Terra é muito mais longo do que a biografia dos humanos, mas não resta dúvida que os regimes climáticos atuais sofrerão grandes mudanças. O degelo da calota polar, o alagamento das zonas litorâneas, a expansão dos desertos (o “rio aéreo” da floresta amazônica pode secar) e a desertificação dos mares são previsíveis: só falta acertar o ano…
Neste momento de crise global, o mundo se desumaniza na medida em que impera a “lei” do mais forte. O massacre do povo palestino na Faixa de Gaza, pelo terrorismo de Estado de Israel, não sofreu real oposição dos governos das grandes potências mundiais, que se limitaram a criticar a desproporção da retaliação israelense contra o Hamas. Outros conflitos desumanos e sangrentos ocorrem na África, onde milícias tribais e exércitos (em grande parte formados por meninos, pois a tecnologia atual não requer força física para empunhar uma arma!) ceifam milhares de vidas, enquanto mulheres são violentadas e a ajuda em alimentos é saqueada. Muitas dessas guerras são incentivadas por interesses externos, ligados à mineração – além das antigas empresas européias e estadunidenses, é importante a presença de capitais chineses, principalmente nas obras de infraestrutura para exportação.
Nesse contexto de desumanização, esgarçam-se os laços de solidariedade e difunde-se uma atitude cínica, que transforma todas as desgraças em espetáculo televisivo. Aliás, este é um tema recorrente no cinema, desde o sucesso do Titanic: espetacularizar o afundamento da civilização ocidental.
Para superar a crise: a parte da teoria
Fomos acostumados a ver a economia como uma área de conhecimento especializado, sobre a qual só gente com muito estudo (de preferência, numa universidade dos EUA) pode se pronunciar. Esquecemos que a teoria econômica nasceu como Economia Política, ao desligar-se da Ética que até o século 18 regulava o mercado. Só recentemente o pensamento neoliberal separou a Economia como ciência do funcionamento do mercado, e a Política como ciência que estuda o funcionamento do Estado. (Por isso o Presidente Lula confiou o Banco Central a H. Meirelles, como se as decisões macroeconômicas não fossem eminentemente políticas). A eclosão da crise implode essa compartimentação de saberes e obriga a alargar o conceito de Economia, para que as relações sociais de produção e distribuição das riquezas sejam inseridas no âmbito das relações dos humanos com a Terra, relações estas que não podem perder seu caráter ético.
Essa mudança na teoria econômica permite-nos descortinar um cenário inteiramente diferente daquele que nos é traçado pelos economistas do sistema. Ao privilegiar a lógica do valor de uso sobre a lógica do valor de troca, o mercado se tornará simples regulador entre a oferta e a procura, perdendo o poder de gerar lucro para quem transforma dinheiro em capital. Essa teoria de um modo de produção e consumo vem sendo chamada de “ecossocialismo”, “socioeconomia solidária”, e outros nomes. Não vou me estender sobre o tema; basta esclarecer que institutos sociais como a economia solidária, a cooperativa e o planejamento estatal podem com vantagem substituir o mercado na regulação da produção, desde que seja respeitado o princípio da subsidiariedade: não assuma a instância maior o que a instância menor é capaz de fazer.
Talvez o pensamento e o exemplo de Ghandi – que faz a ponte entre a racionalidade ocidental e a sabedoria indiana – venha a servir como inspiração para um modo de produção voltado não para o crescimento econômico, mas para o bem-estar de todo ser vivo. Seu ideal humanista de simplicidade de vida, de não-violência (inclusive contra os animais, daí sua prática vegetariana) de autonomia local e regional, pode ser a base de uma nova economia: uma economia que abdica da utopia produtivista do progresso sem fim, para alcançar a utopia da harmonia universal com toda a comunidade de vida – a bela e provocante expressão usada na Carta da Terra para designar o conjunto dos seres viventes, superando o especismo humano.
Será mesmo ingenuidade propor um modo de produção e consumo calcado na simplicidade de Ghandi? Haveria perda substancial para um bilhão de pessoas acostumadas ao automóvel, a viagens aéreas, ao ar condicionado e a outros hábitos que a maioria da humanidade desconhece – embora sonhe um dia também usufruir. Mas outros 5,5 bilhões de pessoas teriam muito a ganhar se a renda mundial per capita estimada em US$8.200 fosse equitativamete distribuída: cada uma receberia o equivalente a R$1.500 mensais. Mesmo descontados os impostos, essa renda é mais que suficiente para viver, se a família contar com serviços públicos eficientes na área da seguridade social, educação e transporte. Com isso quero dizer que não se supera a crise pelo aumento da produção de bens e serviços, mas sim pelo crescimento zero acompanhado da partilha equitativa dos bens já disponíveis. Para sair da crise, há que pensar unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo consumo de energia (em relação aos parâmetros atuais nos países e setores ricos) e submissão aos imperativos éticos, pois não cabe economizar no custo monetário quando isso implica custo ecológico ou humano.
Será isso uma utopia? Sim, com certeza, mas é uma utopia que merece maior credibilidade do que as utopias da tecnologia onipotente, do progresso sem fim e da satisfação dos desejos por meio do consumo de mercadorias.
Para superar a crise: a partir da prática
Para concluir, apresento em poucas linhas algumas lições advindas do Fórum Social Mundial realizado em Belém. Elas mostram que muitos elementos desse novo modo de produção e consumo já são realidade.
Estima-se que existem no mínimo 22 mil empreendimentos de economia solidária no Brasil, onde trabalham cerca de 2 milhões de pessoas. São, em sua grande maioria, pequenas unidades de produção e/ou consumo. A variedade é grande: empresas falidas ocupadas pelos empregados, assentamentos rurais, cooperativas de produção artesanal, grupos de coletadores de material reciclável, cooperativas de serviços, bancos com moeda local e muitos empreendimentos de geração de renda.
Não é preciso dizer que esses empreendimentos enfrentam inúmeras dificuldades para sobreviverem no mercado regido pela lógica concorrencial dos interesses privados. Às dificuldades de ordem jurídica, porque é complicado obter o estatuto legal requerido pela economia formal (v.g. emitir nota fiscal, participar de licitações), acrescentam-se as dificuldades de formação: além do aprendizado necessário ao gerenciamento de qualquer empresa, é preciso ter em conta a especificidade da lógica que rege a economia solidária, pois só consegue êxito num empreendimento desse tipo quem rompe com a lógica concorrencial vigente no mercado. Essa formação para um outro paradigma econômico é inteiramente nova, e não se aprende na escola mas no árduo trabalho de aprender com os erros e acertos, comparando experiências próprias e alheias.
Muitos passos, porém, já foram dados e hoje a economia solidária avança a olhos vistos, nas diferentes partes do nosso Planeta. É importante perceber que ela não quer ser uma forma de política social – focada no atendimento às necessidades de pessoas excluídas do mercado – mas política econômica – um novo modo de produzir, distribuir e consumir bens e serviços. Isso implica duas grandes dificuldades a serem vencidas.
A primeira é o salto do micro ao macro: uma coisa são os empreendimentos locais, que agrupam no máximo algumas centenas de pessoas trabalhando; outra coisa é sua capacidade de um dia vir a atender as necessidades de quase 7 bilhões de pessoas, muitas delas querendo satisfazer os desejos atiçados pela propaganda veiculada pelo sistema capitalista. Esse salto não poderá seguir o modelo capitalista – que gerou a empresas gigantescas, transnacionais, com poder maior do que muitos Estados nacionais – mas deverá espelhar-se na moderna organização em rede: inúmeras pequenas unidades autônomas quanto à sua gestão mas articuladas entre si na consecução de projetos comuns. “Pensar globalmente e agir localmente” significa, hoje mais do que antes, ter um pé firme na base local, o outro caminhando para uma articulação regional, e os olhos na articulação nacional, continental e planetária. A gestão dessa rede só será efetiva se basear-se numa verdadeira democracia na qual o poder econômico não tenham peso algum e as minorias sejam respeitadas dentro dos rumos traçados pela maioria.
A segunda dificuldade a ser vencida reside no campo dos valores que regem o comportamento humano. Desde o Renascimento europeu, a concepção da pessoa humana como indivíduo livre tornou-se a base dos valores e direitos que regulam as nossas relações com outras pessoas e com a natureza. Essa concepção, porém, veio de par com a economia capitalista de mercado, que a levou ao extremo do egocentrismo, como se fosse cada pessoa o eixo em torno do qual o mundo gira. Assim como o egocentrismo deu a forma moral ao modo de produção capitalista, um novo paradigma de valores deve acompanhar o modo de produção e consumo ecológico e solidário. Há quem fale de uma consciência planetária para designar esse novo paradigma onde o ser humano se vê como parte da grande comunidade de vida – parte importante, sem dúvida, mas sem arrogar-se o poder de dominar as outras espécies vivas. Essa nova forma de consciência precisa apoiar-se numa ética universalista (que inclua os direitos animais e os direitos da Terra) e só terá a ganhar se gerar uma espiritualidade que a anime desde seu interior.
Enfim, resta perguntar em que medida esse agente coletivo que se organiza para superar o sistema capitalista pode ser identificado com o FSM. É certo que muitas das pessoas reunidas em Belém do Pará representam movimentos sociais nascidos das bases, mas que não se limitam a lutar por seus interesses específicos, porque os incluem no grande bojo das lutas pela vida do Planeta. Mas é certo, também, que muitos outros grupos e movimentos não estiveram no FSM, pelos mais diversos motivos. O FSM é talvez o principal espaço mundial de articulação desse sujeito histórico coletivo, mas não é o único. É um estimulante espaço de diálogo e participação democrática, merecendo por isso todo respeito, mas é evidente que o processo histórico de superação do sistema capitalista requer muitas outras contribuições e provavelmente ainda ocupará uma boa parte do século 21.
11 de fevereiro de 2009
* Professor da PUC-Minas e membro de ISER-Assessoria