Crise, momento de criação.
Luiz Eduardo W. Wanderley
Crise é entendida normalmente como ruptura, fratura, desconfiança, pânico, pessimismo, sentimento emocional, transição etc., e pode atingir todas as dimensões da sociedade – econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas. No geral, também se sabe que ela é estrutural ou conjuntural, parcial ou sistêmica, de curto ou longo prazo. As conjunturais e parciais são permanentes, com impactos maiores ou menores; as estruturais e sistêmicas abalam os alicerces, os fundamentos, os valores, as interpretações, e são mais esporádicas. Na atual crise financeira, a interpretação geral é a de que ela é estrutural e atinge o cerne do capitalismo neoliberal, mas com cautela sobre os seus efeitos. Por um lado, alguns sustentam que ela se equivale à “queda do muro de Berlim”, e os sinais estão nas conseqüências perversas para todo o mundo, com recessão e paralisia econômica; por outro lado, houve uma tomada de consciência da parte dos governos que tomaram medidas radicais, numa espécie de neokeinesianismo, o que vem sendo feito em todas as regiões do mundo. Nesse campo avaliativo, o foco está em que ela pode ser revertida, exemplificando com 1929 (que durou 10 anos) e outros momentos, no qual o capitalismo saiu revigorado.
O que quero realçar é que crise pode ser entendida, complementarmente, como criação, busca de soluções, desafios a serem enfrentados na busca de novas veredas.
Sobre os acontecimentos atuais e sua velocidade, a perplexidade se expandiu, os analistas oscilam com avaliações pela rama ou de fundo, convergentes ou divergentes, pessimistas ou otimistas.
Na visão histórica, comentaristas e especialistas, principalmente nos campos econômico e político, já apontavam os riscos da configuração capitalista ancorada basicamente no capital financeiro. Os estudiosos das mudanças ocorridas no capitalismo, a partir, sobretudo, da globalização hegemônica, já demonstraram com argumentos sólidos, teóricos e práticos, o lugar ocupado pelo capital financeiro e sua dominância sobre o capital industrial, a desregulamentação do Estado-Nação. Nesse sentido, a presente crise vem referendar, com precisão, a análise conhecida. E os elementos publicizados amplamente agora, até pelos defensores mais conservadores do sistema, do Estado mínimo, da centralidade do Mercado, são conhecidos: economia de cassino (num debate, de modo irônico, alguém comentou se não se podia mudar a nomenclatura, de Wall Street para La Vegas, pois lá o lugar é muito adequado para o funcionamento do cassino!), bolha financeira, bolha especulativa, falta de regulação do Mercado, bolha imobiliária, corte de impostos para os ricos, redução de gastos públicos, empréstimos bancários com juros altos, saturação da demanda, liberdade total de circulação dos capitais, salvação de bancos falidos, quedas nos fundos de pensões etc.
Logo após-crise, membros das agências internacionais, de governos, intelectuais têm sugerido a necessidade urgente de medidas reguladoras sobre o Mercado financeiro. Será que virão? Para evitar efeitos mais devastadores e recuperar a confiança, os Bancos Centrais de quase todos os Estados tomaram medidas de vulto, com trilhões e bilhões de ajuda ao sistema financeiro, ao crédito, aos bancos. Com aplausos de toda parte.
Um dado chocante, mas não inesperado, é o de que, com as quedas e altas nas bolsas, e nas variações do dólar, especuladores já adquiriram ganhos excepcionais, ações de certas empresas subiram em níveis alvissareiros. O cassino continua!
Outro fato a ser explicado, pelo menos nas leituras que tenho feito, é o de que nada se comenta dos “paraísos fiscais”, um componente básico nesse modelo financeiro.
Algo, que vem causando pasmo, é o da ausência das grandes manifestações contra-hegemônicas (tais como, as que foram realizadas nas reuniões do G-8, de Davos, da OMC etc.). Já afetados pelos efeitos da globalização em curso, e que podem ser agravados segundo evidências em vários países, os segmentos da sociedade civil (ONGs, movimentos sociais, igrejas, associações, centrais sindicais) não se fazem ouvir de modo consistente; com algumas exceções em poucos países (no caso brasileiro, as centrais pediram reunião com o governo federal para discutir os impactos sobre os empregos, grupos de trabalhadores se manifestam contra as medidas governamentais que não lhes favorecem). Amedrontados? Acuados? Sem saber que estratégia adotar?
Faço algumas sugestões, que não constituem novidade. Que tal revisitar a proposta de James Tobin, de tributar as transações financeiras de maneira uniforme, de tributar as operações de câmbio para penalizar a especulação? Como se sabe, ela esteve na origem da iniciativa dos fundadores do ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos), que obteve adesões maciças. Se aprovada, uma questão é a de se saber quem cobra e, se for criado um Fundo Social, como pretendido, quem controla.
Estar alerta e acompanhar os passos, na esfera internacional, daqueles que persistem em aprovar o Acordo Multilateral de Investimento (AMI), que vem sendo negociado desde 1995 na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); ele foi projetado para potencializar o poder das empresas transnacionais e eliminar medidas dos governos nacionais que pudessem limitar o movimento de recursos financeiros pelo planeta. Denunciado por grupos mundiais, foi contido, mas, segundo analistas, permanece agindo e sem a divulgação necessária. Na mesma direção, empresas norte-americanas propuseram que algo semelhante sobre os investimentos transnacionais compusesse a ALCA.
Aglutinar todas as forças inovadoras, tanto na análise das implicações amplas dessa crise, quanto na tomada de ações coletivas que denunciem a presente configuração, resistam a seus impactos, e proponham alternativas viáveis, de curto, médio e longo prazos, para sanar os desequilíbrios existentes e obter alguns avanços no controle público desse campo. Nesse sentido, as redes e fóruns devem se mobilizar. Uma oportunidade de ouro será o Fórum Social Mundial, que terá mais uma etapa no Brasil, em Belém do Pará, em janeiro próximo.
Oferecer análises críticas por parte das universidades, se possível de forma articulada entre elas, com estudos, pesquisas, eventos voltados diretamente para a compreensão dessa crise, e para propor alternativas.
Mobilizar manifestações coletivas de todos os setores sociais, no sentido de uma conscientização dos acontecimentos, denúncias sobre as causas do crash financeiro, pressões sobre os governos, em todas as instâncias, para que as medidas sejam em favor de todas as classes e estratos sociais.
Questionar o tema dos créditos. Para que e para quem. Não basta tentar salvar o setor financeiro e o Mercado neoliberal. É preciso explicitar os erros cometidos e ora indicados e comentados. Na aplicação desses enormes recursos, é um imperativo prever e alocar os recursos na perspectiva de assegurar empregos, aperfeiçoar a divisão social do trabalho, ampliar o sistema de proteção social (previdência, saúde, assistência). E não premiar apenas os bancos, mas exigir deles uma difusão do balanço social, que os créditos sejam dirigidos nos objetivos expostos, que os lucros fantásticos se insiram em políticas sociais para as maiorias pobres e excluídas.
A grande mídia deve superar a espetacularização e trazer subsídios, ouvindo defensores de todas as correntes políticas, objetivando estabelecer uma opinião pública consciente e participante.
Outros tópicos são valiosos e, certamente, farão parte das agendas dos setores sociais contra-hegemônicos. Para finalizar, vale enfatizar a estratégia do “realismo utópico”. Realismo, porque é imprescindível reconhecer que a situação é grave e que pode ou não aumentar, os indicadores de pobreza, absoluta e relativa, de desigualdade social, de exclusão e marginalização são avassaladores, a violência cresce, a globalização subordinada e assimétrica prevalece, os defensores dessa modalidade de capitalismo farão de tudo para mantê-la. Utópico, exigindo um aprofundamento constante dos conhecimentos e saberes sobre as sociedades de hoje, no âmbito nacional, regional e mundial, avaliando paradigmas e modelos teóricos do passado e incorporando os contemporâneos. Na perspectiva do “inédito viável”, da utopia como antecipação, com base na descoberta dos embriões e sinais dos tempos, já em desenvolvimento pelas diversas regiões do globo. É necessário caminhar, sem ignorar que derrotas e vitórias acontecerão. Lutando pelo objetivo permanente de resgatar o humano.