A Regeneração da Vida Política Brasileira, numa Perspectiva Universal[1]
Fábio Konder Comparato
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Na língua grega, o adjetivo katholikos significa universal. A sua aplicação à nossa Igreja implica, necessariamente, uma visão mundialista da humanidade, considerada na perspectiva de sua evolução histórica. Nós outros, cristãos, entendemos que a Palavra do Senhor não se dirige exclusiva nem preferencialmente a um só povo, por ele escolhido dentre todos os outros, mas ao conjunto dos seres humanos, sem distinções de qualquer espécie. Além disso, essa visão universal não é estática, mas dinâmica. O Reino de Deus, de que fala a pregação evangélica, não é um evento pontual e definido na História, mas uma realidade essencialmente perfectível, e que existe, por conseguinte, em estado de perpétuo inacabamento.
Ora, essa visão universal e histórica do ser humano, cada povo a tem, necessariamente, em função da sua própria realidade existencial. Uma comunidade religiosa como a nossa, formada em país subdesenvolvido, com uma sociedade profundamente desigual, e que vive em situação de dependência cultural, tecnológica, econômica e política, em relação aos grupos dominantes no mundo – não só Estados, mas também macro-empresas transnacionais – não pode ter a mesma sensibilidade ética perante os fatos da atualidade, que a Igreja instalada em um país desenvolvido.
Essa dupla advertência constitui uma preliminar necessária à compreensão da importância decisiva do atual momento histórico. O processo de unificação da humanidade atinge hoje o seu ponto culminante, com o embate decisivo entre dois movimentos antagônicos: o que se apóia na força militar, na dominação tecnológica e na concentração do poder econômico; e o que se funda na dignidade eminente da pessoa humana. De um lado, a globalização capitalista; de outro, a mundialização humanista.
Para bem compreendermos as dimensões do confronto, vejamos rapidamente como se desenvolveu a última etapa desse processo histórico.
Os principais agentes de unificação da humanidade
O estabelecimento de uma comunicação simultânea e permanente entre os grandes arquipélagos humanos, que constituíam as diferentes civilizações, e que viviam até então relativamente isoladas umas das outras, ocorreu no curto espaço de pouco mais de cinqüenta anos, na segunda metade do século XV e início do século XVI. Quatro fatos históricos marcaram esse momento histórico decisivo: a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453, a expedição de Cristóvão Colombo à América em 1492, a abertura do caminho marítimo entre a Europa e o Extremo Oriente pela armada de Vasco da Gama em 1498, e a viagem de circunavegação do globo terrestre pela frota de Fernão de Magalhães entre 1518 e 1522. A partir de então, formou-se o que um historiador inglês chamou de ecúmeno mundial (do grego oikoumenê: espaço permanentemente habitado). A Terra inteira passou a ser a moradia conjunta da humanidade. Não é demais lembrar, a propósito, que o substantivo êthos (com a letra eta), na língua grega, tem o sentido primigênio de abrigo de animais ou morada dos homens. Trata-se, portanto, de saber se seremos capazes de fazer deste mundo a morada de todos os homens, em posição de igualdade e respeito mútuo.
Dois fatores atuaram preponderantemente no sentido da unificação da humanidade: a expansão universal do monoteísmo missionário, isto é, do cristianismo e do islamismo, e o avanço paulatino do capitalismo aos quatro cantos do mundo, a partir do seu surgimento na Europa da Baixa Idade Média (século XII em diante).
A porfia de cristãos e muçulmanos em converter os pagãos ou infiéis levou-os a sair rapidamente de seu berço histórico – a bacia do Mediterrâneo e a península arábica – para alcançar, em etapas sucessivas, o continente euro-asiático, a África, as Américas e as ilhas da Oceania.
A pregação monoteísta, superando o particularismo étnico das antigas religiões, foi, incontestavelmente, um fator de reunião dos diferentes povos. A fidelidade ao Deus único e verdadeiro, Criador do Céu e da Terra, implica necessariamente o reconhecimento de uma fraternidade universal.
Lamentavelmente, porém, o comportamento de cristãos e muçulmanos, em sua ação missionária ao longo da História, foi mais um agente gerador de conflitos do que de congraçamento dos povos. De um lado, os grandes princípios éticos dessas religiões, fundados na dignidade eminente do ser humano, foram parcialmente sufocados pela exacerbada sacralização dogmática e pelo ritualismo mecânico. De outro lado, a missão sobrenatural de converter os infiéis desenvolveu-se, não raras vezes, com base na violência. Pode-se dizer que cristãos e muçulmanos tiveram o triste privilégio de inaugurar, no mundo moderno, a fase sinistra das guerras de religião.
O outro fator de unificação da humanidade, com a superação do isolamento autárcico das diferentes civilizações, foi o capitalismo. Os empresários cedo compreenderam que a apropriação do saber tecnológico lhes permitia revolucionar o mundo, com a mudança radical, não só das formas de produção de bens e serviços, mas também dos hábitos de consumo e do conjunto dos costumes tradicionais. A partir da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, a burguesia empresarial européia soube criar um verdadeiro mercado cosmopolita, para ensaiar, logo em seguida, os primeiros passos na direção de um império mundial.
Hoje, considerado numa perspectiva histórica, o desafio comunista, que tanto apavorou os cristãos, aparece como mero acidente de percurso para o capitalismo. A rigor, a grande ameaça, com a criação do império soviético após a Segunda Guerra Mundial, durou algumas poucas dezenas de anos. E a China desponta agora claramente, não como uma inimiga, no estilo da extinta União Soviética, mas como uma mera concorrente no plano do mercado mundial. O antigo Império do Meio veio demonstrar a evidência que persistíamos em desconsiderar: as organizações capitalistas não são, de modo algum, incompatíveis com a supressão permanente da liberdade política.
Ora, a empreitada capitalista de dominação mundial tem provocado, tanto ou mais que os conflitos religiosos, uma verdadeira desagregação da humanidade.
Consideremos, em primeiro lugar, a separação entre ricos e pobres na população mundial. Em 1960, os 20% mais ricos tinham uma renda média 30 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em 1997, essa proporção já havia subido para 74, e atualmente encontra-se por volta de 80. Ou seja, em 50 anos, o fosso que separa ricos e pobres, no mundo todo, cresceu 133%, em verdadeira progressão geométrica.
Se aproximarmos a lente, para analisarmos a realidade por dentro, verificaremos, sem grandes dificuldades, que essa disrupção da sociedade mundial é devida ao distanciamento progressivo entre os que vivem do próprio trabalho e os que vivem de rendimentos do capital aplicado. Desde 1980, a parte correspondente aos rendimentos de capital, na formação do produto mundial, não cessa de aumentar, enquanto a dos rendimentos do trabalho, assalariado ou autônomo, continua a decrescer. No Brasil, em 1980, metade da renda nacional era formada pela remuneração do trabalho; agora, um quarto de século depois, ela mal atinge um terço.
Tudo isso no que diz respeito à clássica exploração do homem trabalhador, já denunciada em termos precisos e veementes pelo movimento socialista, desde meados do século XIX. Mas os malefícios do capitalismo não se limitam a esse aspecto da vida social. Eles se estendem muito além, a todos nós, trabalhadores ou não, na relação de consumo. Vivemos agora a segunda vaga de globalização capitalista, provocada pela impossibilidade de se manter, nos países ricos, a mesma taxa de aumento de consumo do imediato pós-guerra. Foi o que levou tais países a forçar de qualquer modo a venda de seus produtos no mundo subdesenvolvido, a fim de enfrentar o problema recorrente do excesso de produção. O sistema capitalista depende, visceralmente, de um aumento constante do consumo global de bens e serviços, sem o que ele entra em colapso. Daí o esforço contínuo na criação de necessidades artificiais de consumo, pelo recurso intensivo à publicidade e à propaganda comercial. A partir de 1998, o sistema capitalista entrou numa fase crítica, em que os gastos com publicidade e propaganda aumentam, ano a ano, em ritmo maior do que o crescimento da produção mundial.
Eis o que foi feito do ser criado à imagem e semelhança de Deus! Na melhor das hipóteses, uma mercadoria cujo preço depende, inteiramente, do jogo de ofertas e demandas no mercado global de trabalho; no pior dos cenários, um simples objeto descartável, quando sua força-trabalho é dispensada no sistema produtivo, e sua capacidade de consumo se extingue pela impossibilidade de pagar até mesmo pelos bens e serviços indispensáveis à sua sobrevivência animal!
Mas não nos deixemos convencer pela tese pseudo-científica de que não há alternativa à globalização capitalista. Um outro mundo é, sim, possível: o mundo solidário da “sociedade universal do gênero humano” (communis humani generi societas), já anunciada por Cícero há mais de vinte séculos.
Bases constitucionais da sociedade universal do gênero humano
Os grandes filósofos gregos, a começar por Platão e Aristóteles, sempre insistiram em que a vida ética tem duas dimensões indissociáveis: a subjetiva e a objetiva. O critério de julgamento da primeira é a virtude (aretê); o da segunda, a lei (nomos); mas não qualquer lei, e sim aquela fundada na Justiça. Para o pensamento grego, não existe separação admissível entre a vida ética individual e a organização constitucional da vida política, dado que a virtude nada mais é do que a lei interiorizada, e a lei, a virtude objetivada. Daí sustentarem esses filósofos que a educação cívica é a principal missão dos governantes.
Ouso dizer que no mundo cristão em geral, e na Igreja Católica em particular, sempre se deu muito mais importância à ética individual, centrada na virtude ou na graça, em oposição ao pecado, do que à ética social, consubstanciada num regime político respeitador da dignidade humana.
É mais do que tempo de se corrigir essa deficiência.
O espírito da nova sociedade, para cuja construção temos o dever maior de colaborar, é fundamentalmente comunitário e, por isso mesmo, republicano. A república, como enfatizaram os romanos, é o regime político da supremacia absoluta do bem comum do povo (res publica, res populi, lembrou Cícero) sobre todo e qualquer interesse particular.
Ora, uma das mais sentidas carências do povo brasileiro sempre foi a referente ao espírito republicano. Frei Vicente do Salvador, primeiro historiador do Brasil, afirmou desconsoladamente, na primeira metade do século XVII, que “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.
Do espírito republicano ou comunitário derivam instituições de igual natureza. Mas as duas coisas implicam-se reciprocamente. Sem a vivência do bem comum, as instituições legais são ineficazes. Mas elas também podem, em certa medida, suscitar no povo o respeito pela coisa pública.
Vejamos, rapidamente, as principais instituições republicanas.
Antes de mais nada, importa salientar que a realização dos direitos fundamentais de caráter econômico, social e cultural constitui um dever precípuo do Estado, não podendo ser confiada a particulares. Nesse campo, uma das mais graves carências dos sistemas jurídicos, tanto no plano nacional, quanto no internacional, é a inexistência de adequados mecanismos jurídicos de garantia para a realização desses direitos.
Em se tratando de bens indispensáveis à independência do país, ou à própria sobrevivência humana, o seu regime jurídico deve excluir toda apropriação privada. Isto se aplica, por exemplo, às reservas de água potável, um bem que tende a se tornar escasso dentro de poucos anos. Aplica-se, também, às reservas florestais, às fontes de energia, como o petróleo e o gás natural, e às jazidas de minerais estratégicos. Nesse particular, o movimento de privatizações, desencadeado neste país a partir dos anos 90 do século passado, representou um verdadeiro crime de lesa-pátria.
No caso das terras agrícolas, a verdadeira reforma agrária consistiria em só admitir como cultivadores as pessoas físicas ou cooperativas de pessoas físicas. O seu direito sobre a terra não seria de propriedade, mas um direito real de uso, condicionado ao cultivo da terra, direito esse não suscetível de alienação, nem entre vivos, nem por causa de morte, dando-se aos herdeiros do agricultor pessoa física a preferência para prosseguirem na exploração da terra.
No mesmo sentido, o princípio republicano da supremacia do bem comum de todos sobre os interesses particulares está a exigir a eliminação da propriedade intelectual sobre invenções relativas a bens ou serviços de primeira necessidade, como os medicamentos destinados à cura das principais doenças. A esse respeito, convém sublinhar que a decisão da Organização Mundial do Comércio de proibir, por um acordo internacional de 1994, que os governos de países pobres quebrassem as patentes dos remédios retrovirais de combate à Aids, representou, sem exagero, um atentado contra a humanidade.
É igualmente de elementar exigência republicana, que se estabeleça um regime de controle comunitário para as macro-empresas privadas, e de obrigatória participação nos lucros, para as empresas médias.
Da mesma forma, e com maioria de razão, numa sociedade republicana a exploração dos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e a televisão, não deveria ser feita por empresas mercantis. As entidades de comunicação de massa utilizam um espaço público, ou seja, um espaço que pertence ao povo. Deveriam, por conseguinte, atuar como prestadoras do serviço público de informação, e não como instrumento de produção de lucro ou de exercício de influência política, em favor dos seus donos.
Falando justamente em serviço público, importa frisar que o seu desempenho deve ser feito exclusivamente pelo Estado, não se devendo admitir, em hipótese alguma, a concessão administrativa do seu exercício a empresas privadas. A prestação de serviço ao povo não se coaduna com a produção de lucros.
É bem de ver, no entanto, que a subsistência de uma sociedade republicana exige a instauração de um regime de poder político adequado. Se o bem comum do povo deve sempre prevalecer sobre os interesses particulares, é indispensável que o poder supremo ou soberania pertença ao próprio povo.
Entendamo-nos, porém, quanto ao sentido do vocábulo. Soberania não é governo: é controle permanente da ação de todos os órgãos estatais. Ela implica, sem dúvida, a eleição dos principais governantes. Mas não apenas isso. Não é soberano o povo que não pode destituir, no curso do mandato, os agentes que elegeu (recall). Não tem soberania o povo que não dispõe do poder de decidir, diretamente, por meio de plebiscito, as grandes questões de interesse comum de todos; ou que não pode referendar a Constituição e suas emendas, as leis e os tratados internacionais celebrados pelo Poder Executivo e ratificados pelo Parlamento.
Além disso, a verdadeira soberania popular comporta, necessariamente, o poder de participação do povo na elaboração de planos de desenvolvimento ou de realização de políticas públicas, bem como de elaboração dos orçamentos públicos e do funcionamento da Administração Pública de modo geral.
Toda república autêntica completa-se, portanto, com a instauração de uma democracia.
A Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia
As explicações que acabam de ser dadas constituem a justificativa do lançamento pela Ordem dos Advogados do Brasil, em novembro de 2004, de uma campanha de regeneração política do nosso país, tendo por objetivo o aprofundamento dos princípios republicano e democrático, inscritos em nossa Constituição, e sistematicamente desconsiderados.
Hoje, é mais do que evidente que a simples realização periódica de eleições não resolve os principais problemas do país, todos eles vinculados à estrutura do regime político e do sistema econômico. E é exatamente por isso que o povo torna-se cético em relação à atividade política de modo geral, e à democracia em particular. Numa pesquisa levada a efeito pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas em 2004, constatou-se que mais de metade da população brasileira prefere, à democracia, um sistema de governo que garanta o desenvolvimento; vale dizer, que estimule o pleno emprego e respeite os direitos humanos de caráter econômico e social. O caminho encontra-se, portanto, aberto a qualquer tipo de aventura política de cunho autoritário.
No quadro da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, já foram oferecidos ao Poder Legislativo, não só da União, como também de vários Estados e Municípios, alguns projetos de lei e propostas de emenda constitucional. Duas dessas proposições devem ser destacadas. A que procura desbloquear o exercício, pelo povo, do seu direito soberano de plebiscito, referendo e iniciativa de projetos de lei e emendas constitucionais (estas só em alguns Estados), e a proposta de emenda constitucional instituindo a revogação popular de mandatos eletivos (recall).
Não se pode, porém, deixar de reconhecer que esse conjunto de propostas de alteração do nosso direito positivo não surtirá o efeito desejado de regeneração dos nossos costumes políticos, se não for acompanhado de um trabalho amplo e profundo de educação cívica. Os costumes, enfatizou Montesquieu, raramente mudam por efeito de leis; eles só se aperfeiçoam por meio de um trabalho pedagógico.
É esta a razão pela qual a Campanha lançada pela OAB depende agora, para prosperar, da colaboração efetiva das instituições que desfrutam daquela auctoritas de que falavam os romanos, isto é, do prestígio moral, que impõe respeito e suscita confiança. É, exemplarmente, o caso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A Igreja sempre desempenhou, neste país, uma função pedagógica. Ela deve agora assumir, em todo o território nacional, um amplo trabalho de educação cívica.
Com isto, o nosso comum esforço em prol da regeneração da vida política brasileira coincidirá plenamente com o movimento universal de unificação da humanidade, com base na Verdade, na Justiça e no Amor.
Brasília, 28 de junho de 2006
[1] Este texto foi apresentado para os Bispos na reunião do Conselho Permanente da CNBB, no dia 28.06.06